Robinsonada é o nome que se dá a histórias das ilhas desertas onde são lançados os náufragos para aí viverem de forma solitária. Um apelido (sem nome) que vem da personagem epónima ao qual se subtraiu o seu segundo patrónimo: Crusoé – forma anglicizada de Kreutznaer, assim se chamava o pai alemão de Robinson quando o mesmo se veio estabelecer na Inglaterra. Temos neste “Crusoé” três das direções mais assinaladas do romance de Daniel Defoe (1719)1.Ao nível narratológico, uma série de viagens anteriores e posteriores à que conduziu Robinson à ilha (onde a estrutura itinerante é recuperada) inscreve a narrativa numa dimensão de aventura e de rutura (Crusoé/cruise). Uma outra abordagem viu na robinsonada uma fábula (é verdade que é realista), inspirada por um contexto económico onde Robinson pode passar pelo representante puritano de um individualismo e de um capitalismo em expansão2 (kreuzer e cruzado são moedas cujo nome se pode ler implicitamente no de Crusoé – sobretudo a segunda: ela faz a fortuna de Robinson nas plantações do Brasil). Ao nível do que o próprio Defoe chama de uma leitura “alegórica”3, enfim, certas críticas fizeram de Robinson Crusoé, com base no modelo das “autobiografias espirituais” encorajadas pelo protestantismo, um romance do arrependimento e da conversão4 (Crusoé/cross-cruz de um cruzado da reconquista, adversidades assim vividas para merecer a salvação).
Quando Defoe faz dizer a Robinson que todas as suas reflexões “são história exata de um estado de confinamento forçado que, na sua história real, [ele] representa por um refúgio confinado numa ilha”5, já não se sabe bem o que há de biográfico e de alegórico. Para além das interpretações que visam considerar o romance de Defoe como uma autobiografia encriptada, estaríamos antes de mais perante a invenção de um mito sendo a origem de inumeráveis reescritas entre as quais se destaca o romance de John M. Coetze, Foe (1986), que faz do autor de Robinson Crusoé, filho das suas obras e pai da robinsonada, uma personagem em ação na sua própria posteridade literária6. Há duas razões principais para este mito: uma identificação do espaço insular com a experiência existencial (ilha deserta = solidão) e a situação de partida à noção de início (naufrágio = origem). Ora, da mesma
maneira que existe uma pluralidade de acessos críticos à narrativa da ilha deserta, observa-se uma grande ambiguidade deste relato, que continua enigmático.
Equívoco é, para começar, esta ilha que se pretende deserta: “é […] ao cessar de o ser que ela se torna representável, apenas a presença nela de um náufrago pode autorizar a descrição da mesma.”7. Distorcida, esta origem em aparência enganosa de uma chegada à ilha, que nos querem apresentar como um batismo e cujos destroços têm tudo de uma arca de Noé técnica, autoriza a reprodução do antigo mundo de forma idêntica. Um duplo desfasamento impede com efeito o começo de ser uma origem absoluta, como o pretende Robinson, quando faz arrancar cada ano pela data do aniversário do seu naufrágio. Um desfasamento entre a narração cronológica interna e o Diário (escrito, aliás, no passado!) que Robinson começa a escrever relembrando retrospetivamente a sua chegada à ilha. Um outro desfasamento, entre o tempo da ilha e o tempo “real”, é a razão do saldo de um ano quando se faz o inventário de todas as datas, apesar disso minuciosamente mencionadas no romance, que a doença de Robinson, que ficou vários dias inconsciente, priva assim do crédito necessário ao nome que Robinson dá a Sexta-feira, para indicar o dia do seu resgate.
Um interesse do romance de Michel Tournier, Sexta-feira ou os limbos do Pacífico (1967) é de centrar o relato de ilha sobre a invenção deste outro chamado Sexta-feira: “Se Robinson Crusoé é um mito, então apenas pode ser o mito da origem de outro.”8 . Nada prefigura melhor este outro do que a marca do pé descoberta um dia à beira da água por Robinson. Esta marca é a de um único pé. Testemunhando a solidão ao ponto de incitar a personagem a assegurar-se de que não é o seu próprio pé, a pegada é a marca em relevo de um outro que ele espera que seja semelhante e de quem tem medo que seja canibal ou possível inimigo. Os animais da ilha (um cabrito, um papagaio…) preenchem neste ponto de vista uma função de alter ego que faz com que Robinson tanto acredite rever-se neles, como se distancie dos mesmos – nos dois casos obriga-se a pensar a sua alteridade.
Uma ilha esconde sempre uma outra. Explicam-se assim os espaços encaixados de “ilha dentro da ilha” partilhados pela maioria das robinsonadas (antros, recinto, circos, bacias, mas também a presença simultânea de pelo menos dois “códigos”, heurístico (ilha a desbravar), hermenêutico (ilha a decifrar), bem mostrados por Roland Barthes a propósito de A Ilha misteriosa (1874)9 e permitindo distinguir a narrativa da ilha – apropriação da ilha em superfície – e o romance da ilha – elucidação de um segredo da ilha em profundidade. Há segredo quando a anterioridade sempre perdida, mas sempre já presente para lá da narrativa da ilha é interiorizada de forma a deixar pensar que a ilha é deserta é porque ela mantém-se virgem de qualquer escrita e que cabe, portanto, a cada reescrita inventar a sua outra ilha fundando aí a sua própria origem10.
1 Ver Éric Fougère, Les Voyages et l’ancrage, représentation de l’espace insulaire à l’âge classique, Paris, L’Harmattan, 1995, p. 61
2 Ver Ian Watt, The Rise of the Novel, Londres, Chatto and Windus, 1957; Robinson Crusoe as a Myth”, in Michael Shinage éd. Robinson Crusoe, Nova York, Londres, Norton & Company, 1975.
3 No seu prefácio nas Réflexions sérieuses de Robinson Crusoé (1720), Paris, Bibliothèque de la Pléiade, 1972, p. 594.
4 Ver George A. Starr, Defoe and Spiritual Autobiography, Princeton, Princeton University Press, John Paul Hunter, The Reluctant Pilgrim, Baltimore, John Hopkins University Press, 1966.
5 D. Defoe, ibid. (sublinho)
6 Ver Jean-Paul Engélibert, La Postérité de Robinson Crusoé, un mythe littéraire de la modernité, Genebra, Droz, 1997.
7 Jean-Michel Racault, « Le paradoxe de l’île déserte », in Lise Andries éd., Paris Éditions Autrement, 1996, p. 104
8 Jean-Pascal Le Goff, Robinson Crusoé ou l’invention d’autrui, Paris, Klincksieck, 2003, p. 176
9 Ver R. Barthes, « Par où commencer ? », in Nouveaux Essais Critiques, Paris, Points Seuil, 1972, p. 145-155.
10 Ver É. Fougère, « Un point sur la reprise insulaire » in Maria de Jesus Cabral e Ana Clara Santos éd. Les Possibilités d’une île, Paris, Pétra, 2014, p. 15-32 ; « Pierre Benoit, récit d’île et roman d’île”, in Carnets, revista eletrónica de estudos franceses, IIª série, nº 3 (2015).