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Etiqueta: prisão

A prisão colonial, entre o ilhéu de Cabrit des Saintes em Guadalupe e colónia penitenciária na Guiana

A “prisão colonial” 1 é não somente o local de detenção que se encontra nas colónias, mas também uma organização submetida à especificidade que se reserva à sua administração. Do mesmo modo que existe um código penal colonial (revogado a 8 de janeiro de 1899), existe um regime de penas interno nas colónias, que se distinguirá daquele que diz respeito aos condenados a trabalhos forçados na metrópole que são enviados para cumprirem a sua pena nas colónias. “Prisão colonial é, portanto, um qualificativo ambivalente. De acordo com o que se designará a origem, (em relação aos factos criminosos e sentenças de tribunais atingindo a população propriamente colonial) ou o destino (colónia da Guiana onde se despacham – “coloniais” e “nacionais” confundidos – todos os condenados da lei sobre o Degredo de 30 de maio de 1854), ter-se-á duas aceções diferentes. Trata-se de prisão colonial no sentido em que é uma instituição que se fiscaliza da metrópole para a colónia, via Ministério do Marinha e das Colónias. Trata-se também de prisão colonial no sentido em que a sua identidade “crioula” está marcada – mas conhece tensões contraditórias entre interesses local e nacional. A esta ambiguidade acrescenta-se um desdobramento, de colónias “simples” a colónia “penitenciária”.

Logo após a abolição da escravatura, um caso típico é o da Guadalupe, em plena mutação social com a chegada da mão-de-obra de “contratados” de origem indiana acusados de fogo posto, e de vagabundos, ao lado de africanos libertos que dão que falar deles por roubos, violências e rebeliões. É na continuidade destes casos criminais recuperados de forma repetida (que não correspondem forçosamente à realidade que lhes quer dar o eco da imprensa e da opinião pública) que é reestruturado o serviço das prisões da colónia por despacho de 26 de dezembro de 18682. A correcionalização das condenações pronunciadas, tal como as dificuldades para instaurar o trabalho em meio prisional, parecem,  entre outros, adotar a mesma evolução do que se passa no Hexágono. Não é apenas nos dados estatísticos comparados que não mostram uma certa analogia com o que é a situação judiciária e penitenciária na metrópole. É no tipo de população visada, na reação que suscita e no dispositivo penal e carcerário imaginado que se deve antes procurar a diferença.  

A julgar apenas pela diferença entre rações “crioulas” e “europeias”, a balanço é desigual3,  – ou sê-lo-ia se houvesse pessoas com direito a ração “europeias”. Porque não se conta com

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qualquer Branco nas prisões guadalupenses, tal como testemunha um relatório estatístico da prisão de Les Saints em 1884, onde a totalidade dos prisioneiros são crioulos (num total de 58), ou de origem indiana (64)4. Esta colónia penal constituída por “prisão forçada e de correção” desde a sua criação em 1852, até ao seu encerramento em 1905, está construída sobre o ilhéu em Cabrit para aí concentrar três categorias de condenados: a mais de um ano de prisão, a trabalhos forçados, à reclusão. A rejeição da sua população penal explica em parte a escolha de afastamento que está fixado numa ilhota, mas também o de permitir à colónia (quando esta renunciar a perpetuar  o seu “presídio” efémero instalado num pontão) “deportar” os seus  reclusos “de raça africana e asiática para o presídio na Guiana, em lugar de os deixar a espiar  a sua pena no local da sua condenação pelos tribunais, como é o caso no Hexágono: agravamento da pena tendo como efeito introduzir na Guiana, ao lado da categoria “forçados”, a categoria  de recluso exclusivamente racial e colonial.

Mede-se a iniquidade da reclusão guianense5 no exame do que fazer no local aos condenados guadalupenses (mas também da Martinica e da Reunião) que fazem partir levas, uma vez por ano em média, da prisão-depósito do ilhéu de Cabrit. Apesar da necessidade legalmente reconhecida, num primeiro tempo, de estabelecer uma ressalva jurídico entre os deportados forçados de 1.ª e os presidiários coloniais, de 2ª categoria, a administração penitenciária chega a esse propósito, de facto, a confundi-los, ao nível dos trabalhos de arroteamento (reputados “os mais penosos da colonização”) como ao das rações alimentares e dos castigos. Se o chapéu de palha que enfarpela os forçados se vê substituído por um feltro cinzento na cabeça dos presidiários, e se são cosidas as iniciais RC (Reclusos Coloniais) na manga esquerda da túnica destes últimos, as duas categorias não estão menos agrupadas, segundo os critérios por evidência étnica e não penais, nos campos mais mortíferos, em particular Sainte-Marie, “para a escavação de certos fossos que teria sido perigoso mandar executar por brancos”6.

Éric Fougère

1 Ver Éric Fougère, La Prison coloniale en Guadeloupe (îlet à Cabrit, 1852-1905), Matoury (Guiana), Ibis Rouge Éditions, 2010.

2 Sucede ao de 1852, sobre a organização das prisões coloniais, e de 1858, sobre o regime interno das prisões.

3 Nos termos do despacho de 1868, as rações dividem-se assim: pão, 660 g, ou farinha de mandioca 60 cl, bacalhau 125 g, legumes 100 g (prisioneiros crioulos); pão 625 g, carne fresca condimentada com 12 g de gordura, 250 g ou carne salgada 200 g, legumes temperados com 12 g de manteiga ou 120g (para prisioneiros de origem europeia ou que justifiquem “hábitos europeus”).

4 Uma média dos anos de 1886 a 1891, indica uma repartição dita “etnográfica”  de 62% de condenados crioulos (negros ou mulatos), 30,5% de origem asiática (Indianos), 0,6% de origem africana (contratados), 0,4% de origem europeia ou metropolitana e 3,3% de diversas proveniências (em particular das colónias inglesas). Ver Armand Corre, Le crime en pays créoles, esquisse d’ethnographie criminelle », Paris, Stock, 1889 e do mesmo autor, L’Ethnographie criminelle d’après les observations et les statistiques recueillies dans les colonies françaises, Paris, C. Reinwald & Cie, 1984.

5 A diferenciar da reclusão que se aplica aos forçados por medida disciplinar na ilha de Saint-Joseph, uma das ilhas do Salut (Guiana).

6 Carta de Bonard, Governador da Guiana, ao Ministro das Colónias (18 de novembro de 1854). Arquivos nacionais do Ultramar, Série Colónias, H45  

A deportação política insular em França

Quando Soljenitsin escreve o Arquipélago do Gulag, diz-se que este título é genial, antes de nos interrogarmos porquê. O Gulag dá os seus primeiros passos no arquipélago dos Solovki, porque a colónia penal czarista tinha feito da ilha de Sacalina um lugar de eleição, mas a deportação russa é naturalmente continental, nos antípodas da deportação britânica na Austrália, que não somente associa desde o início todo um imaginário à insularidade, mas que se implanta igualmente na ilha de Norfolk e na Tasmânia, numa lógica de sobreinsularização, cujo equivalente seria o sobre-afastamento dos campos de “reeducação pelo trabalho” na Sibéria. É justamente da Sibéria, bloco arquicontinental, e mais precisamente da Kolimá, que nos chega a explicação do aparente paradoxo de uma representação de campos soviéticos em arquipélago. Nos seus Contos da Kolymá, Varlam Chalamov (“inimigo do povo”, tendo passado dezassete anos nos campos), quase nunca emprega a palavra “continente” para evocar as terras “livres”:

Em Kolimá, as províncias do centro são sempre chamadas de “continente” (…). A ligação por mar, a linha marítima Vladivostok-Magadan, o desembarque sobre rochedos despidos, tudo isso se assemelhava muito aos quadros do passado, de Sacalina. É assim que se considera Vladivostok como uma cidade do continente, se bem que a Kolimá nunca tenha sido qualificada como ilha1.

Portanto os campos apenas seriam um arquipélago a priori, na medida em que a sua geografia vivida, talvez mesmo fantasiada (que se distinguirá da geografia “real”) é de um continente negativo em espelho, ou antes por defeito, concebido para designar por analogia a privação (nomeadamente de liberdade). Esta forma de utilizar o espaço para fins de representação penal ou carcerária, é tudo o que está em causa das deportações francesas ultramarinas.

Falou-se disso no Código Penal de 1810, onde a deportação deve ser feita “fora do território continental (artigo 17). Na ausência do local nomeadamente designado, a deportação continua teórica, tal como se aperceberá no precedente efémero de um projeto de deportação de mendigos reincidentes em Madagáscar, elaborado por um primeiro Código Penal em 1793. Como se a palavra “continental” (explica-se em parte pelo facto de que a França napoleónica ser então um império europeu2) desenhasse em traços gerais a imagem de ilhas às quais se deviam destinar os deportados, virando-se os projetos de deportação seguintes, com bastante lógica, para a ilha de Bourbon (A Reunião,  circo de Salazie), depois  para  Mayotte  (ilhas  de Pamandzi  e  de Dzaoudzi).  Sem  resultado,  a

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deportação continua a ser aplicada no território nacional em cidadela (no Monte-São Michel, em Doullens e mais tarde ainda em Belle-Île).

Historicamente, a França tem toda uma tradição de deportação nas “ilhas”: na Désirade, onde “arruaceiros” denunciados por cartas de prego (NT.-lettres de cachets, no original) são objeto do despacho de 1763 que os retém prisioneiros aí, num campo com paliçada até 17673; nas Seychelles (e mais tarde nas Comores), na sequência de um senatus-consulto de 1801, que regula a sorte dos acusados do atentado da rue de Saint-Nicaise4, na Córsega e na ilha de Caprera (padres hostis a Napoleão), na ilha de Elba (insurretos de São Domingos e de Guadalupe5), por um vaivém da metrópole e das colónias, cuja história da escravatura tem o segredo…

Mas qualquer oposição doutrinária à deportação acrescenta-se à penúria das ilhas em matéria das escolhas de um local. Barbé-Marbois (ele-próprio antigo deportado de Fructidor) e Tocqueville, (autor de Escritos sobre o sistema penitenciário) colocam-se na situação de adversários da deportação, o primeiro porque a mesma é contraditória com a ideia segundo a qual uma pena deve estar próxima do local do crime6,  e  o segundo porque é partidário de uma reforma penitenciária em que o modelo é o encarceramento celular e não a deportação. A viragem resulta de um duplo acontecimento político: insurreições de junho de 1848 e golpe de Estado de Luís-Napoleão Bonaparte.

O que faz reagir de forma urgente é não apenas o número, inédito desde a Revolução, dos que devem ser julgados, mas também a supressão da pena de morte (artigo 5 da Constituição de 1848) para crime político. Após a lei de 24 de janeiro de 1850, que os deporta para o campo-prisional de Lambessa (Argélia), depois na Guiana (ilhéu La Mère e Ilha do Diabo), a de 8 de junho do mesmo ano escolhe as ilhas Marquesas instaurando dois graus de deportação: “simples” (já incluída no Código Penal), agravada (dita “em recinto fortificado”).

A novidade (prefigurada pelos projetos de deportação para a ilha de Bourbon, depois Mayotte), é a introdução de uma detenção na deportação, de acordo com o conceito de “recinto fortificado”, derivado do de “cidadela”. Assim, não contente por correlacionar o local da pena de modo a conferir todo o afastamento possível ao exílio, o dispositivo associa o encarceramento. O que leva Vítor Hugo a dizer, aquando dos debates legislativos (abril de 1850): “Combina-se o clima, o exílio e a prisão: o clima dá a sua malignidade, o exílio o seu desânimo, a prisão o seu desespero; em vez de um carrasco, temos três. A pena de morte foi substituída? (…)  digam connosco: a pena de morte foi restabelecida.”

É perante um número ainda maior de condenados, resultante dos acontecimentos da Comuna de 1870, que bastará, nos termos da lei de 23 de março de 1872, substituir a ilha dos Pinheiros em Nuku Hiva (deportação simples) e a península de Ducos no vale de Vaitahu (deportação dita em recinto fortificado), para transferir, tal como na Nova Caledónia, o princípio de uma insularidade penal (espaço abstrato caraterizado pelos confins) duplicado por uma insularidade carcerária enquanto local concreto de confinamento7.

Éric Fougère

[1] V. Chalamov, Récits de la Kolyma, Lagrasse, Éditions Verdier, 2003, p. 900.

2 Mas o desterro previsto pelo Código Penal (artigo 8.º) é cumprido “fora do território do império” (artigo 32.º).

3 Ver Éric Fougère, Des Indésirables à la Désirade, Matoury (Guiana), Ibis Rouge Éditions, 2008 e Bernardette e Philippe Rossignol, « Les mauvais sujets de la Désirade », Bulletin de la Société d’histoire de la Guadeloupe nº 153 (maio-agosto 2009)

4 Ver Jean Destrem, Les Déportations du Consulat de l’Empire, Paris, Jeanmaire, 1885

5 Ver Yves Benot, La Démence coloniale sous Napoléon, Paris, La Découverte, 1991.

6 « (…) afastar para distâncias imensas, é fazer perder de vista a lembrança do crime, enquanto se perde de vista o criminoso”. François de Barbé-Marbois, Observations sur les votes de quarante e un conseils généraux de départements, concernant la déportation des forçats libérés, Paris, Imprimerie Royale, 1828, p.61

7 Ver Eric Fougère, Île-prison, bagne et déportation, Paris, L’Harmattan, 2022