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Cenáculo

            O Cenáculo foi um grupo de tertúlia que se reunia no Golden Gate[1], fundado por João dos Reis Gomes, Pe. Fernando Augusto da Silva e Alberto Artur Sarmento, que se tornou relevante pelas ideias apresentadas, embora, até ao momento não se conheça atas ou documentos oficiais da tertúlia que nos permitam avaliar, objetivamente, o debate intelectual. Quanto aos membros constituintes e sabendo da pouca falta de espaço para a aceitação de novos elementos, Joana Góis dá conta de 24 membros (Góis, 2015: 24-25), entre eles o filho de João dos Reis Gomes, Álvaro Reis Gomes.

O Visconde do Porto da Cruz também testemunha o facto da pouca abertura do grupo às novas gerações: “Em volta do ‘Cenáculo’ apareciam curiosos que não se afoitavam a aproximar-se de centro tão restrito, onde, especialmente, Reis Gomes e o Padre Fernando da Silva, não viam com bons olhos o advento de novos valores” (Porto da Cruz, 1953: 12).

Joana Góis partilha da opinião do Visconde e acrescenta que a tertúlia era um mistério em termos de ação coletiva, mas expressava-se muito bem pelo papel das suas individualidades: “A ‘misteriosa’ geração reunia-se em silêncio e permaneceu, acima de tudo, na esfera privada e sem expressão pública dos seus trabalhos” (Góis, 2015: 21).

            Os elementos do Cenáculo gravitam em torno da edição de dois periódicos dirigidos pelo Major João dos Reis Gomes, Heraldo da Madeira e Diário da Madeira, respetivamente, cujas orientações se aproximam de assuntos relacionados com a autonomia, o regionalismo e a história, a literatura, as tradições e a política afetas ao arquipélago madeirense, tudo sob a égide de um certo conservadorismo e patriotismo, mas que não impede a edificação e defesa de uma identidade madeirense.

            Cremos que a ação mais marcante do Cenáculo, enquanto coletividade, é a formação da Mesa do Centenário, com o objetivo de proceder às celebrações dos 500 anos da Madeira. Sempre com a intenção de uma comemoração de âmbito nacional, a ação dos membros da Mesa do Centenário fez com que se lançasse o desafio de modernizar o Funchal, de modo a dignificar o palco do evento.

Entre o Cenáculo e a Mesa do Centenário parece ter havido uma transição natural e, a partir das posições pensadas e publicitadas no Diário da Madeira, fez-se o programa comemorativo do Centenário madeirense. A “Geração do Cenáculo” logrou acrescentar ao acontecimento uma fundamentação cultural, o que despoletou uma atmosfera de conflito com a política da metrópole, o que fez com que, entre dezembro de 1922 e janeiro de 1923, Lisboa não se fizesse representar, apesar das várias comissões de âmbito internacional.

O facto acabou por ser infrutífero pela falta de sustentabilidade argumentativa em relação à identidade madeirense porque, de acordo com Nelson Veríssimo, “Faltaram intelectuais que exaltassem esses princípios que congregaram vontades e animaram a condução de populações por entusiásticos guias” (Veríssimo, 1985: 232). Após os festejos, os cenaculistas também foram vozes participativas na Comissão de Estudo para as Bases da Autonomia da Madeira.

A linha de pensamento do Cenáculo aproxima-se, pelo que podemos avaliar dos seus membros, pelos jornais e pela ação da Mesa do Centenário, de uma identidade madeirense próxima dos valores pátrios (povoamento português, enaltecimento do elemento luso) e não tanto o cosmopolitismo também presente no sentir madeirense[2].

            As reuniões e as ideias do “ninho da águia” não deixaram de ser alvo de críticos que sentiram fascínio pelo grupo: “[Reis Gomes] Vindo do labirinto da vista da cidade, depois de haver feito a sua longa jornada profissional diária – […] – encontrava no íntimo cavaco com amigos, reunidos numa das salas do hotel Golden Gate, o benéfico oásis para o seu descanso físico e intelectual” (Vieira, 1950: 18). Em relação à literatura, João dos Reis Gomes e a “geração do Cenáculo” tornaram-se precursores de intelectuais que, nos anos 40, veem “na narrativa de ficção com forte cunho regionalista” a possibilidade “de constituir uma história, uma memória, uma biblioteca, uma identidade cultural forte para as gerações futuras da Ilha” (Santos, 2008: 569).

Paulo César Vieira Figueira

Bibliografia

Góis, Joana Catarina Silva (2015). A Geração do Cenáculo e as Tertúlias Intelectuais Madeirenses (da I República aos anos 1940) [dissertação de mestrado/texto policopiado]. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Gouveia, Horácio Bento de (1952). Reis Gomes – Homem de Letras. In Das Artes e Da História da Madeira, nº 13. Funchal, 29-31.

Gouveia, Horácio Bento de (1969). O académico e escritor João dos Reis Gomes. In Panorama, nº 29. Lisboa, 6-9.

Figueira, Paulo (2021). João dos Reis Gomes: contributo literário para a divulgação da História da Madeira [tese de doutoramento/texto policopiado]. Funchal: Universidade da Madeira.

Pestana, César (1952). Academias e tertúlias literárias da Madeira – “O Cenáculo”. In Das Artes e da História da Madeira, vol. II, nº 38. Funchal, 21-23.

Porto da Cruz, Visconde (1953). Notas & Comentários Para a História Literária da Madeira, 3º Período: 1910-1952, vol. III. Funchal: Câmara Municipal do Funchal.

Salgueiro, Ana (2011). Os imaginários culturais na construção identitária madeirense (implicações cultura/economia/relações de poder). In Anuário do Centro Estudos e História do Atlântico, nº 3. Funchal: CEHA, 184-204.

Santos, Thierry Proença dos (2008). Gerações, antologias e outras afinidades literárias: a construção de uma identidade cultural na Madeira. In Dedalus, nº 11-12. Lisboa: APLC/Cosmos, 559-582.

Veríssimo, Nelson (1985). Em 1917 a Madeira reclama Autonomia. In António Loja (dir.). Atlântico, nº 3. Funchal: Eurolitho, 230-233.

Vieira, G. Brazão (1950). Um grande vulto que a morte levou: João dos Reis Gomes. In Das Artes e da História da Madeira, nº 2. Funchal, 17-19.


[1] O Golden Gate, conhecido como uma das “esquinas do mundo”, nas palavras de Ferreira de Castro, e devido à sua situação geográfica, perto da Sé do Funchal, do porto, do Palácio de São Lourenço e da Estátua de Zarco, é um famoso espaço de restauração que favorece a passagem de cidadãos de todas as partes do mundo principalmente pela sua esplanada, algo ainda hoje verificável.

[2] Cf. Ana Salgueiro, “Os imaginários culturais na construção identitária madeirense (implicações cultura/economia/relações de poder)”, 184-204.