O drama histórico Guiomar Teixeira, de João dos Reis Gomes, é a adaptação para teatro do romance histórico do mesmo autor, A Filha de Tristão das Damas.
Publicada em 1913 e encenada no mesmo ano no Teatro Funchalense[1], cremos que Guiomar Teixeira se rege pelos mesmos intentos do romance histórico: relembrar os 400 anos do auxílio do Capitão Simão Gonçalves da Câmara na conquista portuguesa de Safim, “A peça foi escripta no intuito de n’um volver de olhos para o passado, despertar dormentes brios e, em especial, alevantar a grande e altiva alma madeirense” (Reis Gomes, 1914: 11), e protestar, subtilmente, contra o estado da autonomia administrativa, concedida ao distrito do Funchal, em 1901: “marca esta peça o início de duma época de revivalismo histórico, que entre nós tem o seu apogeu em 1922, com as Comemorações do V Centenário do Descobrimento da Madeira” (Melo e Carita, 1988: 87).
Seguindo o guião de A Filha de Tristão das Damas, uma das maiores curiosidades de Guiomar Teixeira é a que permite considerar João dos Reis Gomes como o primeiro dramaturgo a introduzir “- estreia absoluta a nível nacional e até internacional – a cinematografia como apoio à representação teatral em palco, exibindo uma fita no 4º e último quadro” (Rodrigues, 2019: 153), na representação da batalha entre cristãos e muçulmanos: “a maestria com que ele [João dos Reis Gomes] visionou o grandioso quadro do cêrco de Safi, onde pela primeira vez surge a originalissima ideia de aproveitar o cinematografo, para revelar imediatamente esta feição especial do seu talento”[2].
Ao Diário da Madeira de 24 de junho de 1913, o próprio João dos Reis Gomes explica a ideia da fusão entre o teatro e o cinema: “o theatro, que se faz soccorrer de tantas artes, sciencias e industrias, utilizaria aqui, com singular aproposito, uma das mais bellas, mais vulgarisadas e mais uteis conquistas da optica: o animatographo”[3]. Ou seja, a Batalha de Safim, que contou com a expedição madeirense, iria ser representada com o auxílio da tela.
O filme é introduzido do seguinte modo: “Ao longe, uma paizagem dos arredores da cidade, reproduzida pelo Cinematographo e onde se passa o ultimo lance da grande batalha com os mouros que terminou com o cerco de Safi” (Reis Gomes, 1914: 79). Durante a passagem do filme mudo, “O Cerco de Safim”, os atores, acompanhados por uma orquestra, fazem os comentários em palco: “Os soldados seguem attentamente, commentando no seguinte dialogo, todas as particularidades do encontro das cavallarias portugueza e mourisca, reproduzido pelo cinematographo” (Reis Gomes, 1914: 79).
“O Cerco de Safim” foi, deste modo, integrado na representação de Guiomar Teixeira. Com este propósito, procedeu-se à filmagem no sítio do chão da Abegoaria, Caniço, a 25 de maio de 1913, como testemunha o Diário da Madeira: “realisou-se ante-hontem no sitio do chão da Abegoaria o annunciado simulacro de combate entre mouros e christãos, que hade ser reproduzido pelo animatographo no terceiro intervallo da monumental peça historica do capitão de artilharia sr. João dos Reis Gomes, Guiomar Teixeira”[4].
A representação de 28 de junho de 1913 contou com a participação de Emma Trigo, como Guiomar, e João dos Reis Gomes, como Cristóvão Colombo, além de Izabel de Oliveira, Maria Dulce Reis Gomes e Vieira de Castro, entre outros[5]. Também foi representada pela prestigiada companhia italiana Vitaliani-Duse, já não “como récita de amadores” (Rodrigues, 2019: 152), em 1914: “O êxito desta peça é tal, que logo nesse ano [1913] é convidada a célebre Companhia Dramática Italiana, Vitaliani-Duse para se deslocar ao Funchal” (Melo e Carita, 1988: 87).
Nas comemorações do Quinto Centenário da Madeira, Guiomar Teixeira volta a ser representada, ligada, uma vez mais, à exultação do brio madeirense, quando os escóis voltavam a reivindicar uma melhor autonomia, num perspetivado melhoramento socioeconómico. Para isso, retomam a Idade de Ouro dos primórdios do arquipélago, camuflando intentos regionalistas e autonomistas das elites madeirenses dos anos 20.
É deste modo que entendemos o papel de Guiomar Teixeira neste evento. Sendo o Quincentenário um acontecimento com visibilidade, faz sentido que uma peça baseada num romance histórico, que, de forma disfarçada, clama por autonomia, seja uma referência das festividades, contando com a publicidade em periódicos canários e com a presença de alguns vultos consagrados, como Sofia de Figueiredo.
Para nós, Guiomar Teixeira justifica uma análise em separado, porque julgamos encerrar aspetos políticos e culturais do sentir a insularidade madeirense e na contribuição na construção desse sentimento identitário, ao tocar em pontos como a autonomia, o regionalismo e o reviver do “período mais glorioso e brilhante da historia d’esta ilha” (Reis Gomes, 1914: 10), embora dentro de uma perspetiva pátria.
O drama histórico vem enaltecer caraterísticas marcantes que validam um panteão regional distinto do todo nacional, mas, em simultâneo, integrante desse todo: “A construção do regionalismo procura alicerces dentro do discurso científico, cultural e literário. A par da afirmação destas políticas e movimentos em prol da região, desenvolvem-se os estudos locais e regionais. A História local e regional ganha evidência e diferencia-se da nacional. Constrói-se o panteão de heróis regionais” (Vieira, 2018: 20).
Guiomar Teixeira foi traduzida para italiano por Virgilio Biondi, com o título La Figlia del Vice-Ré.
Bibliografia
Almeida, Ana Paula Teixeira de (2008). Lugares e Pessoas do Cinema na Madeira: Apontamento para a História do Cinema na Madeira de 1897 a 1930 [dissertação de mestrado]. Funchal: Universidade da Madeira.
Figueira, Paulo (2021). João dos Reis Gomes: contributo literário para a divulgação da História da Madeira [tese de doutoramento]. Funchal: Universidade da Madeira.
Melo, Luís Francisco de Sousa e Carita, Rui (1988). 100 anos do Teatro Municipal Baltazar Dias: 11 de março 1888-1988. Funchal: Câmara Municipal do Funchal.
Reis Gomes, João dos (1914). Guiomar Teixeira. Funchal: Heraldo da Madeira. 2ª ed.
Rodrigues, Paulo Miguel Fagundes de Freitas (2019). O Teatro Municipal de Baltazar Dias: (1888-2018): 130 anos sobre o palco. Funchal: Imprensa Académica.
Vieira, Alberto (2018). Arquipélagos e ilhas entre memória, desmemória e identidade. Funchal: CEHA.
[1] O atual Teatro Municipal Baltazar Dias foi, anteriormente, designado por Teatro D. Maria Pia, Teatro Funchalense e Teatro Dr. Manuel Arriaga.
[2] Periódico Diário da Madeira, 17-2-1913, p. 1, “A filha de Tristam das Damas e a Guiomar Teixeira (Cartas a uma senhora) II”. A segunda parte do artigo de Braz Zinão é um contributo crítico para a apreciação de Guiomar Teixeira, elogiando o talento e inventividade de João dos Reis Gomes, como no caso da introdução do filme “O Cerco de Safim”.
[3] Periódico Diário da Madeira, 24-6-1913, p. 1, “J. Reis Gomes ‘Guiomar Teixeira’”. Neste artigo, Reis Gomes dá a conhecer as conversas que teve em Lisboa com duas personalidades da encenação para a dramatização da peça na capital.
[4] Periódico Diário da Madeira, 27-5-1913, p. 1, “Guiomar Teixeira, ‘o combate entre mouros e christãos’, o dia de ante-hontem no Caniço”.
[5] Periódico Diário da Madeira, 30-6-1913, p. 1, “Noite d’arte”.