Os romances históricos de João dos Reis Gomes são três títulos, A filha de Tristão das Damas (1909 e 1946), O anel do Imperador (1934) e O cavaleiro de Santa Catarina (1942), que se centram em questões políticas, históricas e tradições locais. Do ponto de vista da técnica literária não se trata de romances inovadores, com clara influência da estrutura do modelo do romance histórico romântico.
A relação dessas obras de João dos Reis Gomes com a insularidade, especificamente com a construção da identidade madeirense, dá-se numa perspetiva em que o regionalismo e a afirmação das regiões começa a ser uma realidade na Europa.
Nascido da realidade francesa, em meados do século XIX, o regionalismo influenciou a luta pela emancipação de muitas regiões, incluindo a Madeira (Vieira, 2001: 144). A elite intelectual madeirense procurou legitimar a luta por uma maior visibilidade do arquipélago, através da recuperação de referentes históricos, tradições e traços folclóricos que apoiassem essa identidade insular: “Tão pouco uma classe política, alheada ou desconhecedora do passado histórico terá possibilidades de fazer passar e vingar o seu discurso político” (Vieira, 2001: 143).
A diferença insular identitária em relação ao todo nacional começou a ser construída pelas gerações do início do século XX, dando relevo à História, a outras ciências e à literatura: “estas gerações, com evidentes influências regionalistas, procuraram, através da história, da literatura, da ciência, a construção e validação de um panteão regional sobre o qual assentasse uma marca de diferença” (Figueira, 2021: 130)[1].
É neste contexto que surge A filha de Tristão das Damas, em 1909. O primeiro autodenominado romance histórico madeirense tem como ponto central o auxílio do terceiro donatário do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara, à conquista de Safim, por Portugal. Este motivo serve para celebrar os 400 anos da intervenção madeirense, como um dos episódios históricos do arquipélago, como também para apresentar uma crítica subtil à autonomia administrativa de 1901. É também relevante a publicidade da aposta da política externa portuguesa na manutenção do Império Africano. Aliás, em 1946, data da segunda edição da obra, além da vertente regionalista, é novamente a assunção de Portugal enquanto potência colonial, fora da esfera das potências emergentes (EUA e URSS), que norteia a publicação deste romance histórico. Em 1962, o romance é novamente publicado, mas em fascículos pelo Diário de Notícias do Funchal, com o intuito de defesa da Guerra Ultramarina e da legitimação do Império Português.
O anel do Imperador relata a passagem de Napoleão pelo Funchal, aquando do seu segundo exílio, desta vez para a ilha de Santa Helena. A questão deste episódio histórico aliada à ficcionada visita de senhorita Isabel de S. ao Imperador dos Franceses criou uma tradição popular fixada no romance de João dos Reis Gomes. Por detrás da ficção existe, contudo, a propaganda da figura de Salazar, numa similitude com o episódio de Napoleão pela Madeira, procurando apresentar a figura de um líder político sensível e que merece a aceitação dos seus pares madeirenses. Recorde-se que, na década de 30, entre o governo dos militares e a definitiva ascensão do Estado Novo, o episódio da Revolta da Madeira, uma insurreição político-militar contra o governo da ditadura militar, fez adensar o clima entre a Madeira e a capital, além das leis monopolizadoras em relação à farinha e ao leite, à altura, indústrias importantes no arquipélago.
O salazarismo, na sua ação de propaganda, procurou acolher, no seu seio, as elites madeirenses, num clima de harmonia entre o arquipélago e o Governo, em que se exponencia a vertente regionalista em função da pátria.
O cavaleiro de Santa Catarina oferece ao leitor a fixação da vida e lenda de Henrique Alemão, o sesmeiro da Madalena do Mar, cuja identidade se julga ser a de Ladislau III, o rei polaco que desapareceu na Batalha de Varna (1444).
O autor, com este livro, além da tentativa de preservação de um património fustigado pela aluvião de 1939 na Madalena do Mar, procura a exploração do mito do sebastianismo, pois há uma clara identificação entre a vida do rei polaco e a de D. Sebastião, porque ambos procuram combater os maometanos, mas acabam desaparecidos na decisiva batalha, o rei polaco em Varna e o rei português em Alcácer Quibir.
As circunstâncias deste romance histórico, a aluvião de 1939 e o mito sebástico, também se relacionam com o Mundo Português, em 1940, e a celebração da dupla independência portuguesa (1140 e 1640). Uma vez mais, João dos Reis Gomes apropria-se de uma figura panteística da História e tradição madeirenses para servir os intentos regionalistas e, em simultâneo, a pátria, que, num período político difícil, em plena Segunda Grande Guerra, procura manter a periclitante neutralidade em relação aos blocos das potências beligerantes. A figura sebástica, neste contexto, invoca, a nosso ver, a alma de resistência nacional e a coragem portuguesa numa conjuntura difícil.
Bibliografia
Figueira, Paulo (2021). João dos Reis Gomes: contributo literário para a divulgação da História da Madeira [tese de doutoramento/texto policopiado]. Funchal: Universidade da Madeira.
Figueira, Paulo (2019). O romance histórico na Madeira: o caso de A filha de Tristão das Damas, de João dos Reis Gomes. In Sérgio Guimarães de Sousa e Ana Ribeiro (orgs.). Romance histórico: cânone e periferias. Vila Nova de Famalicão: Húmus/Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho.
Marinho, Maria de Fátima (1999). O romance histórico em Portugal. Porto: Campo de Letras.
Rodrigues, Paulo (2012). O Anel do Imperador (1934), de João dos Reis Gomes, entre a História e a Ficção: Napoleão e a Madeira. In Maria Hermínia Amado Laurel (dir.). Carnets, Invasions & Évasions. La France et nous, nous et la France. Lisboa: APEF/FCT, 81-97.
Vieira, Alberto (2001). A Autonomia na História da Madeira – Questões e Equívocos. In Autonomia e História das Ilhas – Seminário Internacional. Funchal: CEHA/SRTC, 143-175.
Vieira, Alberto (2018). Arquipélagos e ilhas entre memória, desmemória e identidade. Funchal: Cadernos de Divulgação do CEHA.
[1] Alberto Vieira concebe a ideia da construção de um panteão de heróis regionais no sentido da diferenciação entre a história regional e a nacional: “desenvolvem-se os estudos locais e regionais. A História local e regional ganha evidência e diferencia-se da nacional. Constrói-se o panteão de heróis regionais” (Vieira, 2018: 20).