Skip to content

Viagens, de João dos Reis Gomes

O título Viagens surge na literatura de viagem de autores madeirenses como a compilação, a título póstumo, de três obras de João dos Reis Gomes, Através da França, Suíça e Itália, Três Capitais de Espanha e Através da Alemanha. A particularidade desta(s) obra(s) é entendida por ser(em) exemplar(es) de literatura de viagens de um autor madeirense sobre viagens realizadas fora do espaço insular e do espaço português.

            Julgamos, a este propósito, que este tipo de literatura de viagem produzida por autores madeirenses ou afetos à Madeira que se deslocam a espaços continentais permite, no caso de João dos Reis Gomes, a abertura de uma outra sugestão de investigação que é a visão do espaço continental europeu por um ilhéu oriundo de um território da atual ultraperiferia europeia. Os textos de João dos Reis Gomes sugerem, também, a interpretação do fenómeno turístico no início do século XX, ligado a motivos religiosos, de lazer ou medicinais e terapêuticos, algo igualmente vivido no espaço insular.

            Neste âmbito, o testemunho de viagem de um ilhéu num espaço continental vem revelar uma medida de descrição própria de alguém residente numa ilha e que por ela pode medir o mundo, o que permite perspetivar a insularidade como uma abertura ao mundo.

            Em Viagens, João dos Reis Gomes, motivado pelo conhecimento do outro, oferece ao leitor a perspetiva do escritor viajante e não um simples comentário turístico: “apodera-se do ritmo e da técnica do episódio e do relato histórico, assegurando a cor local, através de um olhar testemunha, subjetivo. Surge, então, a categoria do escritor viajante, com uma dupla função: ser um olhar que escreve e, ao mesmo tempo, um escritor” (Mello, 2010: 145). No que concerne aos três livros que compõem o volume Viagens, falamos de uma experiência fruto da segunda peregrinação madeirense aos santuários marianos europeus, de uma viagem de lazer a Espanha e de uma viagem por motivos de saúde e de lazer à Alemanha.

            Através da França, Suíça e Itália foi publicado, como livro, em 1929, com base nas crónicas de João dos Reis Gomes publicadas primeiramente no Diário da Madeira, em 1926, ano da segunda peregrinação madeirense. Pensamos que a segunda peregrinação madeirense se insere no contexto das grandes peregrinações transnacionais que se verificam um pouco por toda a Europa, influenciados pelo clima das aparições de Fátima, da canonização de Margarida de Alacoque, a 13 de maio de 1920, pelo Papa Bento XV, e pela grande afluência de peregrinos à gruta de Lourdes, fenómeno de fé, agilizado pelos grupos católicos.

            Contudo, falamos de um relato de cariz mundano porque, João dos Reis Gomes confessa não se sentir capaz de abordar os assuntos religiosos e escreve porque os amigos lhe pediram que o fizesse: “Tinham-me alguns amigos pedido, com penhorante insistência, que lhes desse umas breves impressões desta peregrinação” (Reis Gomes, 2020: 23). Julgamos que um dos maiores pontos de interesse deste testemunho de viagem é a demonstração do pensamento conservador do autor e as reflexões sobre política, sociedade e cultura, tendo em conta que João dos Reis Gomes é militar de formação e um ilhéu que se vê perante diferentes formas de ser e estar. Ao que podemos juntar uma certa admiração pela ordem política italiana, principalmente se confrontarmos com os acontecimentos em Portugal e a periclitante situação da Primeira República: “O viajante sente a perfeita comunhão do povo com o salvador da Itália [Mussolini]” (Reis Gomes, 2020: 157).

            Como escritor viajante insulano, a saudade apodera-se durante alguns episódios do autor e da comitiva, como é o caso da comparação com a Côte d’Azur e as montanhas da Suíça: “O espetáculo [a paisagem suíça] é, na verdade, grandioso e comovedoramente evocativo. Ninguém deixou de pensar, mais vivamente, na sua casinha da alterosa ilha” (Reis Gomes, 2020: 195).

            No que diz respeito a Três Capitais de Espanha, trata-se do relato de uma viagem de cariz particular, dedicado ao filho Álvaro Reis Gomes, “companheiro nestas digressões” (Reis Gomes, 2020: 227). O périplo do escritor viajante confunde-se com a história espanhola, desde o Norte, Burgos, passando por Toledo, conquistada por Afonso VI, até à cidade imperial de Sevilha. O testemunho do escritor viajante é baseado na arte e na cultura e a subjetividade da admiração: “Mas, porque escrevo, então?! Primeiro, por uma imposição de espírito ou, melhor, de sensibilidade, que me não deixa conter as emoções colhidas – […]; segundo, porque, dado o direito de admirar, na apreciação de qualquer facto, país ou obra de arte, há sempre um certo fator subjetivo” (Reis Gomes, 2020: 229).

            No que respeita a Através da Alemanha, estamos perante a curiosidade de ser um livro publicado em 1949, com as crónicas saídas em 1931, no Diário da Madeira. O propósito da edição livresca é testemunhar ao leitor a civilização alemã anterior à Segunda Grande Guerra: “apenas elementos para um confronto entre o passado [1931] e o presente [1949]; confronto que, por tão desolador como expressivo, oxalá pudesse contribuir – ingénua utopia! – para adoçar a alma e prevenir a consciência” (Reis Gomes, 2020: 283).

Além da abordagem a um país distante da periferia europeia, os interesses de João dos Reis Gomes situam-se em Neubabelsberg, a visita ao estúdio da UFA (Universum-Film Aktiengesellschaft) e a contemplação da arte cinematográfica, a subida do Reno (de onde retirará inspiração para o seu livro A Lenda de Loreley, contada por um latino) e a emoção, como jornalista e homem das artes, na passagem pelo museu de Gutenberg, em Mainz.

Por tudo isto, pensamos que Viagens constitui um exemplo do escritor viajante insulano e da perspetiva exterior que acrescenta ao mundo insular, pela consciência de que se trata de mundos diferentes e pelo fenómeno do turismo. As temáticas discorridas refletem que a insularidade se integra num mundo global, em que os acontecimentos que ocorrem num determinado espaço e tempo se interligam e atuam sobre diversos outros pontos geográficos, sejam de caráter político, cultural, filosófico ou científico.

Paulo César Vieira Figueira

Bibliografia

Cristóvão, Fernando (2002). Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens. Coimbra: Almedina.

Mello, Maria Elizabeth Chaves de (2010). O relato de viagem – narradores, entre a memória, o fictício e o imaginário. In Dalva Calvão e Norimar Júdice (Org.). Gragoatá, 28. Niterói: Universidade Federal Fluminense. 141-152.

Nucera, Domenico (2002). Los viajes y la literatura. In Armando Gnisci (Org.). Introducción a la Literatura Comparada. Barcelona: Editorial Crítica. 241-290.

Reis Gomes, João dos (1949). Através da Alemanha. Lisboa: Livraria Clássica.

Reis Gomes, João dos (1929). Através da França, Suíça e Itália. Lisboa: Livraria Clássica.

Reis Gomes, João dos (1931). Três Capitais de Espanha: Burgos-Toledo-Sevilha. Funchal: Diário da Madeira.

Reis Gomes, João dos (2020). Viagens. Funchal: Imprensa Académica.