O filme Cast away (O náufrago), de Robert Zemeckis (2000), conta a história de Chuck Noland (Tom Hanks), um engenheiro de sistemas ironicamente perito em eficiência temporal, que trabalha para a empresa Federal Express (FedEx) no intuito de tornar as entregas o mais rápidas possível e que, após um trágico acidente de avião, é o único sobrevivente, indo parar a uma pequena ilha deserta perdida no Pacífico. Partindo da análise do filme, sob a prespectiva da identidade pessoal, a relação com o tempo e o papel desempenhado pela ilha e o mar, pretendemos reflectir sobre as transformações emocionais e psicológicas do protagonista, cujo nome não deixa desde logo de indiciar o que vai suceder no filme: “C. (see) No land”.
Da A tempestade de William Shakespeare (1610-1611) e Robinson Crusoé de Daniel Defoe (1719) ao Lord of the Flies, de William Golding (1954) e o filme de ficção científica Robinson Crusoé, de Byron Haskin (1964), artistas de diversos domínios artísticos têm ficado intrigados com a ideia de um ser humano abandonado numa ilha deserta. Tom Hanks referiu que uma das razões pelas quais quis fazer o filme foi reinventar o conceito “stuck on a desert Island”, adaptando-o ao tempo actual.[1]
E de facto a construção narrativa assenta na divisão em dois mundos que surgem como completamente opostos e aparentemente irreconciliáveis: por um lado o mundo ocidental globalizado, no qual Chuck Nolan por motivos profissionais, vive obcecado com a necessidade de controlar o tempo e torná-lo mais rápido e eficiente. O logótipo da sua empresa transportadora consiste numas asas de anjo sob as quais se lê “The world on time”. Por outro lado, temos a natureza em estado selvagem, a força do mar, das tempestades, uma ilha deserta na qual o protagonista tem de aprender a sobreviver com a comida e água potável que encontra.
Um raccord para um plano negro, após a primeira luta de Chuck contra um mar em tempestade, logo após a queda do avião em que seguia, mostra-nos a passagem deste mundo urbano, caótico, prisioneiro do tempo, para um mundo selvagem, da natureza indomável, onde o tempo pode bem deixar de existir. Através da luz dos relâmpagos em plena noite, avistamos terra, através dos olhos exaustos do protagonista. Esta dicotomia é acentuada pela própria sonorização do filme na medida em que nas sequências mais devastadoras, em vez de sermos inundados com música, cessa toda a banda sonora e até a linguagem humana, para permitir que os sons da natureza tudo dominem. Também aqui se verifica um contraste absoluto com a parte do filme antes do desastre, na qual Chuck fala num ritmo acelerado, ininterrupto e ansioso, para agora na ilha ouvirmos os seus gritos desesperados, sem obter qualquer resposta: “Hello? Anybody?”. Quase até ao final do filme irão predominar os sons da natureza, do mar e do vento, até ao momento em que ouvimos alto o pensamento do protagonista.
No entanto, como referido acima, apenas aparentemente são estes dois mundos irreconciliáveis. A consciência do tempo permite ao protagonista descobrir como abandonar a ilha em segurança. É ao marcar na pedra da sua gruta a passagem das estações que percebe quando é a melhor altura para tentar sair da ilha, com a maré e os ventos certos, numa embarcação improvisada. Nessa sequência comenta com Wilson, a bola de volley que se torna o seu melhor amigo, cujo rosto é pintado com o seu próprio sangue: “We live and die by time, didn’t we? Let’s not commit the sin of turning our backs to time.”
Não apenas a bola de volley (o Wilson), mas também o relógio com a foto de Kelly, a sua noiva, a ilha e o próprio mar ganham uma tão intensa carga simbólica que acabam por personificar-se, verificando-se assim a utilização da prosopopeia. Todos estes elementos ajudam Chuck a sobreviver. Esta sobrevivência emocional e social, é de facto tão importante quanto a sobrevivência física. Antes de partir para aquela que seria a viagem quase sem regresso, Chuck e a sua noiva trocam presentes de Natal, ele dá-lhe entre outras coisas um anel de noivado e ela dá-lhe um relógio do seu avô com a fotografia dela preferida de Chuck. Num grande plano o relógio é mostrado com Chuck a acertá-lo sempre pela hora de Memphis, a hora deles: é esta necessidade de controlar o tempo que também o ajuda a salvar-se, pois é esta prisão às memórias e ao passado que vai permitir manter a esperança num possível reencontro.
A construção narrativa pessoal, bem como a sua reelaboração permanente, resultam decisivas para fomentar o sentimento de continuidade pessoal num determinado tempo e espaço. A produção constante de alteridades, de diferentes realidades, reifica e fixa a identidade pessoal, estruturando-a como um instável entrecruzamento entre ficção e realidade. Daí o desabafo de Bernardo Soares: “Sim, amanhã, ou quando o Destino disser, terá fim o que fingiu em mim que fui eu.” (Pessoa, 1982: 177). Estas reflexões ajudam a perceber a importância de recorrer ao passado para conseguir sobreviver e, também, a criação de um outro – o Wilson – para poder estabelecer um diálogo que permitisse a sobrevivência, pois “no reino animal, a regra é, come ou sê comido; no reino humano, define ou sê definido.” (Gonçalves, 2002: 60)
Assim a ilha deserta surge como metáfora da vida neste filme que começa e termina com um picado sobre uma encruzilhada, ou não fosse Zemeckis um herdeiro do melhor cinema clássico americano, assente em bons argumentistas. Um ciclo se fecha, mas nunca se fecham as possibilidades de optar por um determinado caminho ou não fossemos todos náufragos a aprender como sobreviver nesta nossa ilha.
[1] Cf. Cast Away in IMDB (Internet Movie Database), disponível em: https://www.imdb.com/title/tt0162222/trivia/?ref_=tt_trv_trv. Acedido a 17 de Julho de 2022.
Bibliografia:
Blum, Hester. May 2010. “The Prospect of Oceanic Studies” PMLA, Vol. 125, No. 3. Modern Language Association: pp. 670-677
Oscar Gonçalves, Óscar. 2002. Viver narrativamente. A psicoterapia como adjectivação da experiência. 2ª ed., Coimbra: Quarteto Editora.
Pessoa, Fernando. 1982. Livro do desassossego, por Bernardo Soares. Vol. 1. Lisboa: Ática.
Steinberg, Philip E. 2013. “Of other seas: metaphors and materialities in maritime regions,” Atlantic Studies, Vol. 10, Nº 2. Routledge: pp. 156-16