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Categoria: Representações

A ilha da utopia

Poucos locais dependem tanto da sua visão como as ilhas, onde tudo se passa com efeito como se coisa e representação só formassem um, por uma operação que faria corresponder imediatamente o real à sua imagem. Vê-se a ilha estar no mundo ao mesmo tempo que desperta via todo um imaginário. Identificamo-la ao mesmo tempo que a começamos a compreender. Uma das razões do seu mito é a sua centralidade. Se a ilha é, desde a Antiguidade, apresentada como um umbigo (omphalos), é não somente porque representa, em pequeno, o Ecumene cercado de água, mas porque indica a sua origem.  Ora, este berço da ilha, onde a mitologia faz nascer Zeus (em Creta), Apolo (em Delos), Afrodite (em Citera), é também o túmulo que Böcklin pinta no seu Ilha dos mortos. Uma ideia de origem desemboca, portanto na noção de ciclo. E falar de umbigo leva além disso a mencionar o cordão que é a ilha uma vez considerada já não na sua singularidade, mas na sua globalidade de arquipélago, onde a centralidade dá lugar então ao descentramento. Se bem que nunca se acabe por dar a volta à ilha, ao mesmo tempo total e finita, fragmentária e descontínua. Aí encontra-se uma explicação do sucesso do arquétipo insular: a sua ambivalência, ou antes a sua reversibilidade.

É por inversão que o vocábulo “arquipélago” (Aigaion pelagos, etimologicamente o mar Egeu) já não designa hoje o continente “mar”, mas sim o conteúdo “ilhas” ou que inversamente a palavra Mediterrâneo não designava o mar do mesmo nome, mas, literalmente, o que se encontra no meio das terras. É um pouco do mesmo modo que a utopia, género impossível de dissociar da ilha com a qual nasceu, não pode ser encarada sem postular simultaneamente a sua realidade espacial e a sua ficção de lugar situado em lado nenhum. Ou-topos, aliás dito “não lugar”. Mas colocar a negação volta – tal é o seu paradoxo – a negá-la. Não é que a utopia não esteja em nenhum lugar, é que ela é o lugar do seu não-lugar. É da sua própria natureza ser outro, e o seu em parte nenhuma ser um outro lugar, ou até mesmo um nenhum outro lugar – uma realidade de ficção condicionada por um vazio onde se constituirá, num jogo de palavras, o melhor dos mundos possíveis (eu-topos)1.

Sabe-se que as páginas do manuscrito que se presume informar-nos sobre as coordenadas da ilha da Utopia de Thomas Moore (1516) desapareceram, que Raphaël Hythloday, viajante e narrador utopiano do livro, está inconsciente durante a sua chegada a uma terra desconhecida e que, como se isso não fosse suficiente, o acesso de tosse de um criado impede, no Livro 1, que se ouça uma primeira vez a posição por palavras que são apenas sussurradas. O lugar da Utopia continuará sem localização. Só a narração, depois de o narrador ter abandonado a ilha, atestará a veracidade desta, pela ficção.   É  o  que a restitui

que a institui. A utopia faz do discurso uma condição do espaço e é o livro epónimo, aqui, que qualifica não somente a ilha, mas também, logo, qualquer género utópico.

Um primeiro ato utópico é cortar o istmo ligando a futura ilha ao continente. Este movimento de fundação geográfica (um corte logo seguido de um fecho) é completado pela nomeação do local desse tipo segundo o nome do seu fundador, Utopus, com o qual ele se confunde como um lugar fundado no que o denomina, um lugar cuja configuração se apresenta em anfiteatro e constitui a ilha em palco. Um estreito sucede ao istmo, invertendo a continuidade terrestre antiga em solução de continuidade líquida. Um rochedo, “visível de muito longe”, realiza em seguida uma reduplicação por encaixamento diminutivo. (Este dispositivo “encaixado” é redobrado pela menção de um golfo “imenso” em forma de “grande lago” interior).  No centro da ilha, (no seu “umbigo”): uma cidade servindo de capital. Um rosário de faróis escalonado em todo o território insular, enfim, confere à ilha uma visibilidade completa. “(…) a ilha de Thomas Moore oferece-se (…) toda inteira como uma carta2

Efeito de fundação: a ilha é um novo mundo. Efeito de condensação: a ilha é um pequeno mundo. Efeito de reduplicação: a ilha é um mundo em espelho. Efeito de nomeação: a ilha é um monograma3. Efeito de apropriação: a ilha torna-se apropriada para a realização de um poder e de um saber. Efeito de modelização: a ilha é um mundo imagético, que importa, em todos os seus pontos ver ao mesmo tempo como uma carta, uma cena, um quadro. Mas este mundo outro da ilha é o nosso, um Mundus alter et idem, tal como define o título de uma utopia de Joseph Hall, escrita em 1605. “Reter-se-á sobretudo como critério decisivo da insularidade a obrigação de pensar a ilha na sua secundariedade mais do que na sua singularidade. Inseparável da referência ao que ela não é, a temática da ilha estaria necessariamente associada à relação dialética que esta alimenta com o espaço continental4.

Assim se explica que a bipolaridade, não somente da utopia (não há utopia sem distopia…), mas do significado da ilha em geral(edénico/apocalítico, erótico/eremítico, histórico/ideológico, etc.), apenas tenha como equivalente a sua reversibilidade. Razão pela qual, à noção de diferença ou de desvio, substituir-se-á à noção de neutro ou de intervalo. Ou de heterotopias: “tipos de contralocalização, tipos de utopias efetivamente realizadas nas quais as localizações reais, todas as outras localizações que se podem encontrar no interior da cultura são ao mesmo tempo representadas, contestadas e invertidas, tipos de lugares que estão fora de todos os lugares, embora porém sejam efetivamente localizáveis”5.

Éric Fougère

[1] Ver  Louis Marin, Utopiques : jeux d’espaces, Paris, Éditons de Minuit, 1973.

2 Jean-Michel Racault, Robinson & Compagnie, aspects de l’insularité politique de Thomas More à Michel Tournier, Paris, Éditions Pétra, 2010, p. 28 (sublinhado no texto).

3 Monograma é o termo empregue por Frank Lestringant para indicar a singularidade do paradigma insular. Voir Le Livre des îles, atlas et récits insulaires de la Genèse à Jules Verne, Genève, Droz, 2002, p. 333-334.

4 J.-M. Racault, Ibid., p. 16. Sublinhado no texto.

5 Michel Foucault, « Des espaces autres », conferência no Cercle d’études architecturales (14 março 1967), in Architecture, Mouvement, Continuité, n° 5 (outubro 1984), p. 46-49. Retomado em Dits et écrits II, Paris, Quarto Gallimard 2001, p. 1574-1575.

Ilha e robinsonada

Robinsonada é o nome que se dá a histórias das ilhas desertas onde são lançados os náufragos para aí viverem de forma solitária. Um apelido (sem nome) que vem da personagem epónima ao qual se subtraiu o seu segundo patrónimo: Crusoé – forma anglicizada de Kreutznaer, assim se chamava o pai alemão de Robinson quando o mesmo se veio estabelecer na Inglaterra. Temos neste “Crusoé” três das direções mais assinaladas do romance de Daniel Defoe (1719)1.Ao nível narratológico, uma série de viagens anteriores e posteriores à que conduziu Robinson à ilha (onde a estrutura itinerante é recuperada) inscreve a narrativa numa dimensão de aventura e de rutura (Crusoé/cruise).  Uma outra abordagem viu na robinsonada uma fábula (é verdade que é realista), inspirada por um contexto económico onde Robinson pode passar pelo representante puritano de um individualismo e de um capitalismo em expansão2 (kreuzer e cruzado são moedas cujo nome se pode ler implicitamente no de Crusoé – sobretudo a segunda: ela faz a fortuna de Robinson nas plantações do Brasil). Ao nível do que o próprio Defoe chama de uma leitura “alegórica”3, enfim, certas críticas fizeram de Robinson Crusoé, com base no modelo das “autobiografias espirituais” encorajadas pelo protestantismo, um romance do arrependimento e da conversão4 (Crusoé/cross-cruz de um cruzado da reconquista, adversidades assim vividas para merecer a salvação).

Quando Defoe faz dizer a Robinson que todas as suas reflexões “são história exata de um estado de confinamento forçado que, na sua história real, [ele] representa por um refúgio confinado numa ilha”5, já não se sabe bem o que há de biográfico e de alegórico. Para além das interpretações que visam considerar o romance de Defoe como uma autobiografia encriptada, estaríamos antes de mais perante a invenção de um mito sendo a origem de inumeráveis reescritas entre as quais se destaca o romance de John M. Coetze, Foe (1986), que faz do autor de Robinson Crusoé, filho das suas obras e pai da robinsonada, uma personagem em ação na sua própria posteridade literária6. Há duas razões principais para este mito: uma identificação do espaço insular com a experiência existencial (ilha deserta = solidão) e a situação de partida à noção de início (naufrágio = origem).  Ora,  da  mesma

maneira que existe uma pluralidade de acessos críticos à narrativa da ilha deserta, observa-se uma grande ambiguidade deste relato, que continua enigmático.

Equívoco é, para começar, esta ilha que se pretende deserta: “é  […] ao cessar de o ser que ela se torna representável, apenas a presença nela de um náufrago pode autorizar a descrição da mesma.”7. Distorcida, esta origem em aparência enganosa de uma chegada à ilha, que nos querem apresentar como um batismo e cujos destroços têm tudo de uma arca de Noé técnica, autoriza a reprodução do antigo mundo de forma idêntica. Um duplo desfasamento impede com efeito o começo de ser uma origem absoluta, como o pretende Robinson, quando faz arrancar cada ano pela data do aniversário do seu naufrágio. Um desfasamento entre a narração cronológica interna e o Diário (escrito, aliás, no passado!) que Robinson começa a escrever relembrando retrospetivamente a sua chegada à ilha.  Um outro desfasamento, entre o tempo da ilha e o tempo “real”, é a razão do saldo de um ano quando se faz o inventário de todas as datas, apesar disso minuciosamente mencionadas no romance, que a doença de Robinson, que ficou vários dias inconsciente, priva assim do crédito necessário ao nome que Robinson dá a Sexta-feira, para indicar o dia do seu resgate.

Um interesse do romance de Michel Tournier, Sexta-feira ou os limbos do Pacífico (1967) é de centrar o relato de ilha sobre a invenção deste outro chamado Sexta-feira: “Se Robinson Crusoé é um mito, então apenas pode ser o mito da origem de outro.”8 . Nada prefigura melhor este outro do que a marca do pé descoberta um dia à beira da água por Robinson. Esta marca é a de um único pé.  Testemunhando a solidão ao ponto de incitar a personagem a assegurar-se de que não é o seu próprio pé, a pegada é a marca em relevo de um outro que ele espera que seja semelhante e de quem tem medo que seja canibal ou possível inimigo. Os animais da ilha (um cabrito, um papagaio…) preenchem neste ponto de vista uma função de alter ego que faz com que Robinson tanto acredite rever-se neles, como se distancie dos mesmos – nos dois casos obriga-se a pensar a sua alteridade.

Uma ilha esconde sempre uma outra. Explicam-se assim os espaços encaixados de “ilha dentro da ilha” partilhados pela maioria das robinsonadas (antros, recinto, circos, bacias, mas também a presença simultânea de pelo menos dois “códigos”, heurístico (ilha a desbravar), hermenêutico (ilha a decifrar), bem mostrados por Roland Barthes a propósito de A Ilha misteriosa (1874)9 e permitindo distinguir a narrativa da ilha – apropriação da ilha em superfície – e o romance da ilha – elucidação de um segredo da ilha em profundidade. Há segredo quando a anterioridade sempre perdida, mas sempre já presente para lá da narrativa da ilha é interiorizada de forma a deixar  pensar que a ilha é deserta é porque ela mantém-se virgem de qualquer escrita e que cabe, portanto, a cada reescrita inventar a sua outra ilha fundando aí a sua própria origem10.

Éric Fougère

1 Ver Éric Fougère, Les Voyages et l’ancrage, représentation de l’espace insulaire à l’âge classique, Paris, L’Harmattan, 1995, p. 61

2 Ver Ian Watt, The Rise of the Novel, Londres, Chatto and Windus, 1957; Robinson Crusoe as a Myth”, in Michael Shinage éd. Robinson Crusoe, Nova York, Londres, Norton & Company, 1975.

3 No seu prefácio nas Réflexions sérieuses de Robinson Crusoé (1720), Paris, Bibliothèque de la Pléiade, 1972, p. 594.

4 Ver George A. Starr, Defoe and Spiritual Autobiography, Princeton, Princeton University Press, John Paul Hunter, The Reluctant Pilgrim, Baltimore, John Hopkins University Press, 1966.

5 D. Defoe, ibid. (sublinho)

6 Ver Jean-Paul Engélibert, La Postérité de Robinson Crusoé, un mythe littéraire de la modernité, Genebra, Droz, 1997.

7 Jean-Michel Racault, « Le paradoxe de l’île déserte », in Lise Andries éd., Paris Éditions Autrement, 1996, p. 104

8 Jean-Pascal Le Goff, Robinson Crusoé ou l’invention d’autrui, Paris, Klincksieck, 2003, p. 176

9 Ver R. Barthes, « Par où commencer ? », in Nouveaux Essais Critiques, Paris, Points Seuil, 1972, p. 145-155.

10 Ver É. Fougère, « Un point sur la reprise insulaire » in Maria de Jesus Cabral e Ana Clara Santos éd. Les Possibilités d’une île, Paris, Pétra, 2014, p. 15-32 ; « Pierre Benoit, récit d’île et roman d’île”, in Carnets, revista eletrónica de estudos franceses, IIª série, nº 3 (2015).

Como um náufrago. Tempo, ilha e mar

O filme Cast away (O náufrago), de Robert Zemeckis (2000), conta a história de Chuck Noland (Tom Hanks), um engenheiro de sistemas ironicamente perito em eficiência temporal, que trabalha para a empresa Federal Express (FedEx) no intuito de tornar as entregas o mais rápidas possível e que, após um trágico acidente de avião, é o único sobrevivente, indo parar a uma pequena ilha deserta perdida no Pacífico. Partindo da análise do filme, sob a prespectiva da identidade pessoal, a relação com o tempo e o papel desempenhado pela ilha e o mar, pretendemos reflectir sobre as transformações emocionais e psicológicas do protagonista, cujo nome não deixa desde logo de indiciar o que vai suceder no filme: “C. (see) No land”.

Da A tempestade de William Shakespeare (1610-1611) e Robinson Crusoé de Daniel Defoe (1719) ao Lord of the Flies, de William Golding (1954) e o filme de ficção científica Robinson Crusoé, de Byron Haskin (1964), artistas de diversos domínios artísticos têm ficado intrigados com a ideia de um ser humano abandonado numa ilha deserta. Tom Hanks referiu que uma das razões pelas quais quis fazer o filme foi reinventar o conceito “stuck on a desert Island”, adaptando-o ao tempo actual.[1]

E de facto a construção narrativa assenta na divisão em dois mundos que surgem como completamente opostos e aparentemente irreconciliáveis: por um lado o mundo ocidental globalizado, no qual Chuck Nolan por motivos profissionais, vive obcecado com a necessidade de controlar o tempo e torná-lo mais rápido e eficiente. O logótipo da sua empresa transportadora consiste numas asas de anjo sob as quais se lê “The world on time”. Por outro lado, temos a natureza em estado selvagem, a força do mar, das tempestades, uma ilha deserta na qual o protagonista tem de aprender a sobreviver com a comida e água potável que encontra.

Um raccord para um plano negro, após a primeira luta de Chuck contra um mar em tempestade, logo após a queda do avião em que seguia, mostra-nos a passagem deste mundo urbano, caótico, prisioneiro do tempo, para um mundo selvagem, da natureza indomável, onde o tempo pode bem deixar de existir. Através da luz dos relâmpagos em plena noite, avistamos terra, através dos olhos exaustos do protagonista. Esta dicotomia é acentuada pela própria sonorização do filme na medida em que nas sequências mais devastadoras, em vez de sermos inundados com música, cessa toda a banda sonora e até a linguagem humana, para permitir que os sons da natureza tudo dominem.  Também aqui se verifica um contraste absoluto com a parte do filme antes do desastre, na qual Chuck fala num ritmo acelerado, ininterrupto e ansioso, para agora na ilha ouvirmos os seus gritos desesperados, sem obter qualquer resposta: “Hello? Anybody?”. Quase até ao final do filme irão predominar os sons da natureza, do mar e do vento, até ao momento em que ouvimos alto o pensamento do protagonista.

No entanto, como referido acima, apenas aparentemente são estes dois mundos irreconciliáveis. A consciência do tempo permite ao protagonista descobrir como abandonar a ilha em segurança. É ao marcar na pedra da sua gruta a passagem das estações que percebe quando é a melhor altura para tentar sair da ilha, com a maré e os ventos certos, numa embarcação improvisada. Nessa sequência comenta com Wilson, a bola de volley que se torna o seu melhor amigo, cujo rosto é pintado com o seu próprio sangue: “We live and die by time, didn’t we? Let’s not commit the sin of turning our backs to time.”

Não apenas a bola de volley (o Wilson), mas também o relógio com a foto de Kelly, a sua noiva, a ilha e o próprio mar ganham uma tão intensa carga simbólica que acabam por personificar-se, verificando-se assim a utilização da prosopopeia. Todos estes elementos ajudam Chuck a sobreviver. Esta sobrevivência emocional e social, é de facto tão importante quanto a sobrevivência física. Antes de partir para aquela que seria a viagem quase sem regresso, Chuck e a sua noiva trocam presentes de Natal, ele dá-lhe entre outras coisas um anel de noivado e ela dá-lhe um relógio do seu avô com a fotografia dela preferida de Chuck. Num grande plano o relógio é mostrado com Chuck a acertá-lo sempre pela hora de Memphis, a hora deles: é esta necessidade de controlar o tempo que também o ajuda a salvar-se, pois é esta prisão às memórias e ao passado que vai permitir manter a esperança num possível reencontro.

A construção narrativa pessoal, bem como a sua reelaboração permanente, resultam decisivas para fomentar o sentimento de continuidade pessoal num determinado tempo e espaço. A produção constante de alteridades, de diferentes realidades, reifica e fixa a identidade pessoal, estruturando-a como um instável entrecruzamento entre ficção e realidade. Daí o desabafo de Bernardo Soares: “Sim, amanhã, ou quando o Destino disser, terá fim o que fingiu em mim que fui eu.”  (Pessoa, 1982: 177). Estas reflexões ajudam a perceber a importância de recorrer ao passado para conseguir sobreviver e, também, a criação de um outro – o Wilson – para poder estabelecer um diálogo que permitisse a sobrevivência, pois “no reino animal, a regra é, come ou sê comido; no reino humano, define ou sê definido.” (Gonçalves, 2002: 60)

Assim a ilha deserta surge como metáfora da vida neste filme que começa e termina com um picado sobre uma encruzilhada, ou não fosse Zemeckis um herdeiro do melhor cinema clássico americano, assente em bons argumentistas. Um ciclo se fecha, mas nunca se fecham as possibilidades de optar por um determinado caminho ou não fossemos todos náufragos a aprender como sobreviver nesta nossa ilha.

Ana Bela Morais


[1] Cf. Cast Away in IMDB (Internet Movie Database), disponível em: https://www.imdb.com/title/tt0162222/trivia/?ref_=tt_trv_trv. Acedido a 17 de Julho de 2022.

Bibliografia:

Blum, Hester. May 2010. “The Prospect of Oceanic Studies” PMLA, Vol. 125, No. 3. Modern Language Association: pp. 670-677

Oscar Gonçalves, Óscar. 2002. Viver narrativamente. A psicoterapia como adjectivação da experiência. 2ª ed., Coimbra:  Quarteto Editora.

Pessoa, Fernando. 1982. Livro do desassossego, por Bernardo Soares. Vol. 1. Lisboa: Ática.

Steinberg, Philip E. 2013. “Of other seas: metaphors and materialities in maritime regions,” Atlantic Studies, Vol. 10, Nº 2. Routledge: pp. 156-16

Viagens, de João dos Reis Gomes

O título Viagens surge na literatura de viagem de autores madeirenses como a compilação, a título póstumo, de três obras de João dos Reis Gomes, Através da França, Suíça e Itália, Três Capitais de Espanha e Através da Alemanha. A particularidade desta(s) obra(s) é entendida por ser(em) exemplar(es) de literatura de viagens de um autor madeirense sobre viagens realizadas fora do espaço insular e do espaço português.

            Julgamos, a este propósito, que este tipo de literatura de viagem produzida por autores madeirenses ou afetos à Madeira que se deslocam a espaços continentais permite, no caso de João dos Reis Gomes, a abertura de uma outra sugestão de investigação que é a visão do espaço continental europeu por um ilhéu oriundo de um território da atual ultraperiferia europeia. Os textos de João dos Reis Gomes sugerem, também, a interpretação do fenómeno turístico no início do século XX, ligado a motivos religiosos, de lazer ou medicinais e terapêuticos, algo igualmente vivido no espaço insular.

            Neste âmbito, o testemunho de viagem de um ilhéu num espaço continental vem revelar uma medida de descrição própria de alguém residente numa ilha e que por ela pode medir o mundo, o que permite perspetivar a insularidade como uma abertura ao mundo.

            Em Viagens, João dos Reis Gomes, motivado pelo conhecimento do outro, oferece ao leitor a perspetiva do escritor viajante e não um simples comentário turístico: “apodera-se do ritmo e da técnica do episódio e do relato histórico, assegurando a cor local, através de um olhar testemunha, subjetivo. Surge, então, a categoria do escritor viajante, com uma dupla função: ser um olhar que escreve e, ao mesmo tempo, um escritor” (Mello, 2010: 145). No que concerne aos três livros que compõem o volume Viagens, falamos de uma experiência fruto da segunda peregrinação madeirense aos santuários marianos europeus, de uma viagem de lazer a Espanha e de uma viagem por motivos de saúde e de lazer à Alemanha.

            Através da França, Suíça e Itália foi publicado, como livro, em 1929, com base nas crónicas de João dos Reis Gomes publicadas primeiramente no Diário da Madeira, em 1926, ano da segunda peregrinação madeirense. Pensamos que a segunda peregrinação madeirense se insere no contexto das grandes peregrinações transnacionais que se verificam um pouco por toda a Europa, influenciados pelo clima das aparições de Fátima, da canonização de Margarida de Alacoque, a 13 de maio de 1920, pelo Papa Bento XV, e pela grande afluência de peregrinos à gruta de Lourdes, fenómeno de fé, agilizado pelos grupos católicos.

            Contudo, falamos de um relato de cariz mundano porque, João dos Reis Gomes confessa não se sentir capaz de abordar os assuntos religiosos e escreve porque os amigos lhe pediram que o fizesse: “Tinham-me alguns amigos pedido, com penhorante insistência, que lhes desse umas breves impressões desta peregrinação” (Reis Gomes, 2020: 23). Julgamos que um dos maiores pontos de interesse deste testemunho de viagem é a demonstração do pensamento conservador do autor e as reflexões sobre política, sociedade e cultura, tendo em conta que João dos Reis Gomes é militar de formação e um ilhéu que se vê perante diferentes formas de ser e estar. Ao que podemos juntar uma certa admiração pela ordem política italiana, principalmente se confrontarmos com os acontecimentos em Portugal e a periclitante situação da Primeira República: “O viajante sente a perfeita comunhão do povo com o salvador da Itália [Mussolini]” (Reis Gomes, 2020: 157).

            Como escritor viajante insulano, a saudade apodera-se durante alguns episódios do autor e da comitiva, como é o caso da comparação com a Côte d’Azur e as montanhas da Suíça: “O espetáculo [a paisagem suíça] é, na verdade, grandioso e comovedoramente evocativo. Ninguém deixou de pensar, mais vivamente, na sua casinha da alterosa ilha” (Reis Gomes, 2020: 195).

            No que diz respeito a Três Capitais de Espanha, trata-se do relato de uma viagem de cariz particular, dedicado ao filho Álvaro Reis Gomes, “companheiro nestas digressões” (Reis Gomes, 2020: 227). O périplo do escritor viajante confunde-se com a história espanhola, desde o Norte, Burgos, passando por Toledo, conquistada por Afonso VI, até à cidade imperial de Sevilha. O testemunho do escritor viajante é baseado na arte e na cultura e a subjetividade da admiração: “Mas, porque escrevo, então?! Primeiro, por uma imposição de espírito ou, melhor, de sensibilidade, que me não deixa conter as emoções colhidas – […]; segundo, porque, dado o direito de admirar, na apreciação de qualquer facto, país ou obra de arte, há sempre um certo fator subjetivo” (Reis Gomes, 2020: 229).

            No que respeita a Através da Alemanha, estamos perante a curiosidade de ser um livro publicado em 1949, com as crónicas saídas em 1931, no Diário da Madeira. O propósito da edição livresca é testemunhar ao leitor a civilização alemã anterior à Segunda Grande Guerra: “apenas elementos para um confronto entre o passado [1931] e o presente [1949]; confronto que, por tão desolador como expressivo, oxalá pudesse contribuir – ingénua utopia! – para adoçar a alma e prevenir a consciência” (Reis Gomes, 2020: 283).

Além da abordagem a um país distante da periferia europeia, os interesses de João dos Reis Gomes situam-se em Neubabelsberg, a visita ao estúdio da UFA (Universum-Film Aktiengesellschaft) e a contemplação da arte cinematográfica, a subida do Reno (de onde retirará inspiração para o seu livro A Lenda de Loreley, contada por um latino) e a emoção, como jornalista e homem das artes, na passagem pelo museu de Gutenberg, em Mainz.

Por tudo isto, pensamos que Viagens constitui um exemplo do escritor viajante insulano e da perspetiva exterior que acrescenta ao mundo insular, pela consciência de que se trata de mundos diferentes e pelo fenómeno do turismo. As temáticas discorridas refletem que a insularidade se integra num mundo global, em que os acontecimentos que ocorrem num determinado espaço e tempo se interligam e atuam sobre diversos outros pontos geográficos, sejam de caráter político, cultural, filosófico ou científico.

Paulo César Vieira Figueira

Bibliografia

Cristóvão, Fernando (2002). Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens. Coimbra: Almedina.

Mello, Maria Elizabeth Chaves de (2010). O relato de viagem – narradores, entre a memória, o fictício e o imaginário. In Dalva Calvão e Norimar Júdice (Org.). Gragoatá, 28. Niterói: Universidade Federal Fluminense. 141-152.

Nucera, Domenico (2002). Los viajes y la literatura. In Armando Gnisci (Org.). Introducción a la Literatura Comparada. Barcelona: Editorial Crítica. 241-290.

Reis Gomes, João dos (1949). Através da Alemanha. Lisboa: Livraria Clássica.

Reis Gomes, João dos (1929). Através da França, Suíça e Itália. Lisboa: Livraria Clássica.

Reis Gomes, João dos (1931). Três Capitais de Espanha: Burgos-Toledo-Sevilha. Funchal: Diário da Madeira.

Reis Gomes, João dos (2020). Viagens. Funchal: Imprensa Académica.

Romances Históricos – João dos Reis Gomes

Os romances históricos de João dos Reis Gomes são três títulos, A filha de Tristão das Damas (1909 e 1946), O anel do Imperador (1934) e O cavaleiro de Santa Catarina (1942), que se centram em questões políticas, históricas e tradições locais. Do ponto de vista da técnica literária não se trata de romances inovadores, com clara influência da estrutura do modelo do romance histórico romântico.

A relação dessas obras de João dos Reis Gomes com a insularidade, especificamente com a construção da identidade madeirense, dá-se numa perspetiva em que o regionalismo e a afirmação das regiões começa a ser uma realidade na Europa.

Nascido da realidade francesa, em meados do século XIX, o regionalismo influenciou a luta pela emancipação de muitas regiões, incluindo a Madeira (Vieira, 2001: 144). A elite intelectual madeirense procurou legitimar a luta por uma maior visibilidade do arquipélago, através da recuperação de referentes históricos, tradições e traços folclóricos que apoiassem essa identidade insular: “Tão pouco uma classe política, alheada ou desconhecedora do passado histórico terá possibilidades de fazer passar e vingar o seu discurso político” (Vieira, 2001: 143).

A diferença insular identitária em relação ao todo nacional começou a ser construída pelas gerações do início do século XX, dando relevo à História, a outras ciências e à literatura: “estas gerações, com evidentes influências regionalistas, procuraram, através da história, da literatura, da ciência, a construção e validação de um panteão regional sobre o qual assentasse uma marca de diferença” (Figueira, 2021: 130)[1].

É neste contexto que surge A filha de Tristão das Damas, em 1909. O primeiro autodenominado romance histórico madeirense tem como ponto central o auxílio do terceiro donatário do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara, à conquista de Safim, por Portugal. Este motivo serve para celebrar os 400 anos da intervenção madeirense, como um dos episódios históricos do arquipélago, como também para apresentar uma crítica subtil à autonomia administrativa de 1901. É também relevante a publicidade da aposta da política externa portuguesa na manutenção do Império Africano. Aliás, em 1946, data da segunda edição da obra, além da vertente regionalista, é novamente a assunção de Portugal enquanto potência colonial, fora da esfera das potências emergentes (EUA e URSS), que norteia a publicação deste romance histórico. Em 1962, o romance é novamente publicado, mas em fascículos pelo Diário de Notícias do Funchal, com o intuito de defesa da Guerra Ultramarina e da legitimação do Império Português.

            O anel do Imperador relata a passagem de Napoleão pelo Funchal, aquando do seu segundo exílio, desta vez para a ilha de Santa Helena. A questão deste episódio histórico aliada à ficcionada visita de senhorita Isabel de S. ao Imperador dos Franceses criou uma tradição popular fixada no romance de João dos Reis Gomes. Por detrás da ficção existe, contudo, a propaganda da figura de Salazar, numa similitude com o episódio de Napoleão pela Madeira, procurando apresentar a figura de um líder político sensível e que merece a aceitação dos seus pares madeirenses. Recorde-se que, na década de 30, entre o governo dos militares e a definitiva ascensão do Estado Novo, o episódio da Revolta da Madeira, uma insurreição político-militar contra o governo da ditadura militar, fez adensar o clima entre a Madeira e a capital, além das leis monopolizadoras em relação à farinha e ao leite, à altura, indústrias importantes no arquipélago.

            O salazarismo, na sua ação de propaganda, procurou acolher, no seu seio, as elites madeirenses, num clima de harmonia entre o arquipélago e o Governo, em que se exponencia a vertente regionalista em função da pátria.

            O cavaleiro de Santa Catarina oferece ao leitor a fixação da vida e lenda de Henrique Alemão, o sesmeiro da Madalena do Mar, cuja identidade se julga ser a de Ladislau III, o rei polaco que desapareceu na Batalha de Varna (1444).

            O autor, com este livro, além da tentativa de preservação de um património fustigado pela aluvião de 1939 na Madalena do Mar, procura a exploração do mito do sebastianismo, pois há uma clara identificação entre a vida do rei polaco e a de D. Sebastião, porque ambos procuram combater os maometanos, mas acabam desaparecidos na decisiva batalha, o rei polaco em Varna e o rei português em Alcácer Quibir.

            As circunstâncias deste romance histórico, a aluvião de 1939 e o mito sebástico, também se relacionam com o Mundo Português, em 1940, e a celebração da dupla independência portuguesa (1140 e 1640). Uma vez mais, João dos Reis Gomes apropria-se de uma figura panteística da História e tradição madeirenses para servir os intentos regionalistas e, em simultâneo, a pátria, que, num período político difícil, em plena Segunda Grande Guerra, procura manter a periclitante neutralidade em relação aos blocos das potências beligerantes. A figura sebástica, neste contexto, invoca, a nosso ver, a alma de resistência nacional e a coragem portuguesa numa conjuntura difícil.

Paulo César Vieira Figueira

Bibliografia

Figueira, Paulo (2021). João dos Reis Gomes: contributo literário para a divulgação da História da Madeira [tese de doutoramento/texto policopiado]. Funchal: Universidade da Madeira.

Figueira, Paulo (2019). O romance histórico na Madeira: o caso de A filha de Tristão das Damas, de João dos Reis Gomes. In Sérgio Guimarães de Sousa e Ana Ribeiro (orgs.). Romance histórico: cânone e periferias. Vila Nova de Famalicão: Húmus/Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho.

Marinho, Maria de Fátima (1999). O romance histórico em Portugal. Porto: Campo de Letras.

Rodrigues, Paulo (2012). O Anel do Imperador (1934), de João dos Reis Gomes, entre a História e a Ficção: Napoleão e a Madeira. In Maria Hermínia Amado Laurel (dir.). Carnets, Invasions & Évasions. La France et nous, nous et la France. Lisboa: APEF/FCT, 81-97.

Vieira, Alberto (2001). A Autonomia na História da Madeira – Questões e Equívocos. In Autonomia e História das Ilhas – Seminário Internacional. Funchal: CEHA/SRTC, 143-175.

Vieira, Alberto (2018). Arquipélagos e ilhas entre memória, desmemória e identidade. Funchal: Cadernos de Divulgação do CEHA.


[1] Alberto Vieira concebe a ideia da construção de um panteão de heróis regionais no sentido da diferenciação entre a história regional e a nacional: “desenvolvem-se os estudos locais e regionais. A História local e regional ganha evidência e diferencia-se da nacional. Constrói-se o panteão de heróis regionais” (Vieira, 2018: 20).

Orlanda Amarílis

Orlanda Amarílis Lopes Rodrigues Fernandes Ferreira foi uma escritora cabo-verdiana, nascida na ilha de Santiago, a 8 de outubro de 1924. No Mindelo (ilha de São Vicente), completou o ensino básico e secundário, antes de passar ao Estado Português de Goa, onde terminou os estudos para o Magistério Primário. Já em Lisboa, formou-se em Ciências Pedagógicas, na Universidade de Lisboa. Veio a falecer na capital portuguesa a 1 de fevereiro de 2014.

As letras foram sempre uma presença na sua vida, através do marido, o escritor Manuel Ferreira (Leiria, 18-7-1917/Linda-a-Velha, 17-3-1992), estudioso das literaturas e culturas africanas lusófonas, autor de No Reino de Caliban e A aventura crioula, do pai, Armando Napoleão Rodrigues Fernandes (Brava, 1-7-1889/Praia, 19-6-1969), que publicou o primeiro dicionário crioulo-português, O Dialecto Crioulo: Léxico do Dialecto Crioulo do Arquipélago de Cabo Verde, e de Baltazar Lopes da Silva (São Nicolau, 23-4-1907/Lisboa, 28-5-1989), autor de Chiquinho e fundador da revista Claridade.

Orlanda Amarílis, como membro da Academia Cultivar, fundada por alunos do Liceu Gil Eanes, e colaboradora da revista Certeza (1944), pertenceu à Geração de Certeza, cuja pretensão principal é problematizar o isolamento do arquipélago de Cabo Verde e das ilhas entre si, com o propósito edificador da cultura e identidade cabo-verdianas: “os escritores da Geração de Certeza propõem fincar os pés na terra e assumem um compromisso com a ação e a mudança, a partir, sobretudo, de textos literários que privilegiem a reconstrução da identidade cabo-verdiana e o combate à opressão” (Deus, 2020: 75-76).

Em relação à Geração de Certeza e suposta problemática com os claridosos, Orlanda Amarílis fala de um trabalho de continuidade:

quando apareceu a Certeza, não foi para combater a Claridade como ouvi algures. Até já ouvi que Certeza não foi marco nenhum. No entanto, para nós [os membros da Academia Cultivar], Certeza viria trazer algo de novo. Havia um pulsar diferente dentro de nós, de uma geração posterior, portanto mais recente que os fundadores da Claridade. Fundar Certeza foi dar continuidade ao que a Claridade tinha iniciado. (Laban, 1992: 271-272)

Com o tempo, Amarílis tornou-se um dos mais importantes rostos femininos da literatura cabo-verdiana, expressando, na sua obra, a mulher cabo-verdiana e a diáspora. As suas histórias revelam um importante contributo para o registo e divulgação do património imaterial de Cabo Verde.

Aquando do regresso, após uma longa ausência, relembra a sua insularidade perdida, procurando nesse tempo de afastamento físico a força que a fez escrever e divulgar a vida das ilhas, mesmo na “tontice ingénua” de poder reviver esse tempo:

eu fui colocada na posição de procura de um universo perdido e, se essa rotura existiu virtualmente, foi bom, porque me obrigou a escrever. No entanto, o meu clima emocional de então não tem razão de ser neste momento. É uma tontice ingénua pensarmos ser possível, ao fim de tantos anos de ausência, reviver as emoções de então. […]. Quando há alguns anos voltei a Cabo Verde, perante mim espalharam-se as cinzas do vulcão que foi a minha vida até aos dezasseis anos. (Laban, 1992: 263)

Como obra mais marcante consideramos Cais do Sodré té Salamansa (1974; 1991), cujo título é uma referência a Lisboa e à ilha de São Vicente, mais precisamente à povoação situada a nordeste do Mindelo. O conjunto de sete contos dá a conhecer as facetas que apontamos nos contos de Orlanda Amarílis, com relevância para a diáspora, a mulher e o sentir cabo-verdiano do abandono e regresso às ilhas, num percurso iniciado em “Cais do Sodré” e terminado em “Salamansa”.

Com personagens que encarnam as ilhas, pela identidade, pela linguagem (expressões, formas de tratamento, canções, hábitos do quotidiano), pela dificuldade e agrura da vida, e pela subtileza dicotómica, física e figurada, entre a personagem que sai do espaço do arquipélago e a que permanece, “estando em exílio, contrapõem a todo tempo a memória de sua identidade cabo-verdiana às modificações causadas pela distância espacial e temporal, e essa distância vai se inserindo nas suas filiações identitárias” (Silva, 2010: 63), Orlanda Amarílis oferece uma reflexão sobre “questões importantes do cenário sociocultural cabo-verdiano como, por exemplo, a ressignificação da identidade cultural, a violência de gênero, a opressão sofrida pelas mulheres, a solidão, a emigração” (Deus, 2020: 80).

De Cais do Sodré té Salamansa, destacamos o que podemos considerar uma síntese da escrita de Orlanda Amarílis. Na parte final do conto “Salamansa”, Antoninha “garganteia com sabura” (Amarílis, 1991: 82) uma canção em crioulo, que serve de mote para invocar a praia de Salamansa, a comunhão com o mar e a emigrada Linda, menina da “rua do Cavoquinho” (Amarílis, 1991: 80), que simboliza as dificuldades da vida das mulheres das ilhas: “Oh, Salamansa, praia de ondas soltas e barulhentas como meninas intentadas em dia de S. João. Oh, Salamansa, de peixe frito nos pratos cobertos no fundo dos balaios e canecas de milho ilhado por titia em caldeiras com areia quente. Areia de Salamansa, Linda a rolar na areia” (Amarílis, 1991: 82).

Das obras da autora, cabe-nos referir, além de Cais do Sodré té Salamansa, Ilhéu dos pássaros (1982), A casa dos Mastros (1989), Facécias e Peripécias (1990), A tartaruguinha (1997).

Paulo César Vieira Figueira

Bibliografia

Amarílis, Orlanda (1991). Cais do Sodré té Salamansa. Linda-a-Velha: ALAC.

Deus, Lílian Paula Serra e (2020). Orlanda Amarílis, Vera Duarte e Dina Salústio: a tessitura da escrita de autoria feminina na ficção cabo-verdiana. In Regina Dalcastagnè (Dir.). Veredas – Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, nº 33. Coimbra: Associação Internacional de Lusitanistas. 74-87.

Figueira, Paulo (2014).Estudo Lexical sobre Cais do Sodré Té Salamansa, de Orlanda Amarílis. In Marcelino de Castro (Dir.). Islenha, nº 55. Funchal: DRAC. 63-74.

Laban, Michel (1992). Cabo Verde: encontro com escritores. Vol. I. Porto: Fundação Engenheiro António de Almeida.

Laranjeira, Pires (1987). Formação e desenvolvimento das literaturas africanas de língua portuguesa. In Literaturas africanas de língua portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 15-24.

Mariano, Gabriel (1991). Cultura caboverdeana – ensaios. Lisboa: Vega.

Silva, Elisa Maria Taborda da (2010). Cais do Sodré té Salamansa: o cabo-verdiano em exílio. In Beatriz Junqueira Guimarães (Ed.). Cadernos CESPUC de Pesquisa, nº 19. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 61-70. Trigo, Salvato (1987). Literatura colonial/Literaturas africanas. In Literaturas africanas de língua portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 139-158.

Guiomar Teixeira, de João dos Reis Gomes

O drama histórico Guiomar Teixeira, de João dos Reis Gomes, é a adaptação para teatro do romance histórico do mesmo autor, A Filha de Tristão das Damas.

Publicada em 1913 e encenada no mesmo ano no Teatro Funchalense[1], cremos que Guiomar Teixeira se rege pelos mesmos intentos do romance histórico: relembrar os 400 anos do auxílio do Capitão Simão Gonçalves da Câmara na conquista portuguesa de Safim, “A peça foi escripta no intuito de n’um volver de olhos para o passado, despertar dormentes brios e, em especial, alevantar a grande e altiva alma madeirense” (Reis Gomes, 1914: 11), e protestar, subtilmente, contra o estado da autonomia administrativa, concedida ao distrito do Funchal, em 1901: “marca esta peça o início de duma época de revivalismo histórico, que entre nós tem o seu apogeu em 1922, com as Comemorações do V Centenário do Descobrimento da Madeira” (Melo e Carita, 1988: 87).

Seguindo o guião de A Filha de Tristão das Damas, uma das maiores curiosidades de Guiomar Teixeira é a que permite considerar João dos Reis Gomes como o primeiro dramaturgo a introduzir “- estreia absoluta a nível nacional e até internacional – a cinematografia como apoio à representação teatral em palco, exibindo uma fita no 4º e último quadro” (Rodrigues, 2019: 153), na representação da batalha entre cristãos e muçulmanos: “a maestria com que ele [João dos Reis Gomes] visionou o grandioso quadro do cêrco de Safi, onde pela primeira vez surge a originalissima ideia de aproveitar o cinematografo, para revelar imediatamente esta feição especial do seu talento”[2].

Ao Diário da Madeira de 24 de junho de 1913, o próprio João dos Reis Gomes explica a ideia da fusão entre o teatro e o cinema: “o theatro, que se faz soccorrer de tantas artes, sciencias e industrias, utilizaria aqui, com singular aproposito, uma das mais bellas, mais vulgarisadas e mais uteis conquistas da optica: o animatographo”[3]. Ou seja, a Batalha de Safim, que contou com a expedição madeirense, iria ser representada com o auxílio da tela.

O filme é introduzido do seguinte modo: “Ao longe, uma paizagem dos arredores da cidade, reproduzida pelo Cinematographo e onde se passa o ultimo lance da grande batalha com os mouros que terminou com o cerco de Safi” (Reis Gomes, 1914: 79). Durante a passagem do filme mudo, “O Cerco de Safim”, os atores, acompanhados por uma orquestra, fazem os comentários em palco: “Os soldados seguem attentamente, commentando no seguinte dialogo, todas as particularidades do encontro das cavallarias portugueza e mourisca, reproduzido pelo cinematographo” (Reis Gomes, 1914: 79).

“O Cerco de Safim” foi, deste modo, integrado na representação de Guiomar Teixeira. Com este propósito, procedeu-se à filmagem no sítio do chão da Abegoaria, Caniço, a 25 de maio de 1913, como testemunha o Diário da Madeira: “realisou-se ante-hontem no sitio do chão da Abegoaria o annunciado simulacro de combate entre mouros e christãos, que hade ser reproduzido pelo animatographo no terceiro intervallo da monumental peça historica do capitão de artilharia sr. João dos Reis Gomes, Guiomar Teixeira”[4].

A representação de 28 de junho de 1913 contou com a participação de Emma Trigo, como Guiomar, e João dos Reis Gomes, como Cristóvão Colombo, além de Izabel de Oliveira, Maria Dulce Reis Gomes e Vieira de Castro, entre outros[5]. Também foi representada pela prestigiada companhia italiana Vitaliani-Duse, já não “como récita de amadores” (Rodrigues, 2019: 152), em 1914: “O êxito desta peça é tal, que logo nesse ano [1913] é convidada a célebre Companhia Dramática Italiana, Vitaliani-Duse para se deslocar ao Funchal” (Melo e Carita, 1988: 87).

Nas comemorações do Quinto Centenário da Madeira, Guiomar Teixeira volta a ser representada, ligada, uma vez mais, à exultação do brio madeirense, quando os escóis voltavam a reivindicar uma melhor autonomia, num perspetivado melhoramento socioeconómico. Para isso, retomam a Idade de Ouro dos primórdios do arquipélago, camuflando intentos regionalistas e autonomistas das elites madeirenses dos anos 20.

É deste modo que entendemos o papel de Guiomar Teixeira neste evento. Sendo o Quincentenário um acontecimento com visibilidade, faz sentido que uma peça baseada num romance histórico, que, de forma disfarçada, clama por autonomia, seja uma referência das festividades, contando com a publicidade em periódicos canários e com a presença de alguns vultos consagrados, como Sofia de Figueiredo.

Para nós, Guiomar Teixeira justifica uma análise em separado, porque julgamos encerrar aspetos políticos e culturais do sentir a insularidade madeirense e na contribuição na construção desse sentimento identitário, ao tocar em pontos como a autonomia, o regionalismo e o reviver do “período mais glorioso e brilhante da historia d’esta ilha” (Reis Gomes, 1914: 10), embora dentro de uma perspetiva pátria.

O drama histórico vem enaltecer caraterísticas marcantes que validam um panteão regional distinto do todo nacional, mas, em simultâneo, integrante desse todo: “A construção do regionalismo procura alicerces dentro do discurso científico, cultural e literário. A par da afirmação destas políticas e movimentos em prol da região, desenvolvem-se os estudos locais e regionais. A História local e regional ganha evidência e diferencia-se da nacional. Constrói-se o panteão de heróis regionais” (Vieira, 2018: 20).

Guiomar Teixeira foi traduzida para italiano por Virgilio Biondi, com o título La Figlia del Vice-Ré.

Paulo César Vieira Figueira

Bibliografia

Almeida, Ana Paula Teixeira de (2008). Lugares e Pessoas do Cinema na Madeira: Apontamento para a História do Cinema na Madeira de 1897 a 1930 [dissertação de mestrado]. Funchal: Universidade da Madeira.

Figueira, Paulo (2021). João dos Reis Gomes: contributo literário para a divulgação da História da Madeira [tese de doutoramento]. Funchal: Universidade da Madeira.

Melo, Luís Francisco de Sousa e Carita, Rui (1988). 100 anos do Teatro Municipal Baltazar Dias: 11 de março 1888-1988. Funchal: Câmara Municipal do Funchal.

Reis Gomes, João dos (1914). Guiomar Teixeira. Funchal: Heraldo da Madeira. 2ª ed.

Rodrigues, Paulo Miguel Fagundes de Freitas (2019). O Teatro Municipal de Baltazar Dias: (1888-2018): 130 anos sobre o palco. Funchal: Imprensa Académica.

Vieira, Alberto (2018). Arquipélagos e ilhas entre memória, desmemória e identidade. Funchal: CEHA.


[1] O atual Teatro Municipal Baltazar Dias foi, anteriormente, designado por Teatro D. Maria Pia, Teatro Funchalense e Teatro Dr. Manuel Arriaga.

[2] Periódico Diário da Madeira, 17-2-1913, p. 1, “A filha de Tristam das Damas e a Guiomar Teixeira (Cartas a uma senhora) II”. A segunda parte do artigo de Braz Zinão é um contributo crítico para a apreciação de Guiomar Teixeira, elogiando o talento e inventividade de João dos Reis Gomes, como no caso da introdução do filme “O Cerco de Safim”.

[3] Periódico Diário da Madeira, 24-6-1913, p. 1, “J. Reis Gomes ‘Guiomar Teixeira’”. Neste artigo, Reis Gomes dá a conhecer as conversas que teve em Lisboa com duas personalidades da encenação para a dramatização da peça na capital.

[4] Periódico Diário da Madeira, 27-5-1913, p. 1, “Guiomar Teixeira, ‘o combate entre mouros e christãos’, o dia de ante-hontem no Caniço”.

[5] Periódico Diário da Madeira, 30-6-1913, p. 1, “Noite d’arte”.

A Ilha em Filmes e Séries Televisivas de Terror Paranormal Norte-Americanas e Inglesas nos Séculos XX e XXI

[Em Cinema, Terror]: Apesar de estar amplamente presente em filmes e séries televisivas de terror, a ilha enquanto objecto de terror carece ainda de estudos aprofundados. Nos séculos XX e XXI, a ilha tem vindo a ser palco de inúmeros filmes e séries televisivas de terror. Mais especificamente, a ilha é frequentemente representada como o sítio onde o terror se desenrola, mas raramente é a fonte de terror em si. Contudo, existem alguns exemplos notáveis onde é a própria ilha que representa o terror, quer por causa dos seus habitantes, como é exemplo Doomwatch (Sasdy 1972) ou The Wicker Man (Hardy 1973), quer por causa da sua fauna e flora, como, por exemplo, Jaws (Spielberg 1975) e The Bay (Levinson 2012). As características que a ilha evoca podem ser lidas num binário. Em vez de representar um paraíso privado, estas ilhas geralmente representam a reclusão individual ou de grupo, que propicia a necessidade de sobrevivência. A ilha funciona, frequentemente, como a representação do afastamento daquilo que é considerado uma sociedade ‘normal’ e da incapacidade dos/as personagens de a encontrar em segurança, o que está geralmente relacionado com a ideia do sobrenatural, como são exemplos Blood Beach (Bloom 1981), The Woman in Black (Watkins 2012), uma adaptação do livro homónimo de Susan Hill (1983), e Sweetheart (Dillard 2019), ou de loucura, por exemplo, Shutter Island (Scorsese 2010) ou The Lighthouse (Eggers 2019). A ilha também evoca sentimentos de encarceramento, recursos limitados, formas de vida estranhas ou alienígenas. Representa, também, um lugar onde a privacidade pode significar o velar do terror ao exterior, como por exemplo Midnight Mass (Flanagan 2021), que evoca o terror religioso, que é contido e mantido em segredo do resto do mundo precisamente por se desenrolar numa ilha, ou Fantasy Island (Wadlow 2020), onde a noção de ilha paradisíaca e idílica é subvertida no seu oposto distópico. A ilha em filmes de terror tem vindo a ser estudada a partir de uma perspectiva pós-colonial (Williams 1983; Martens 2021), uma perspectiva particularmente interessada em filmes Norte-Americanos e Ingleses, que desenvolvem a sua produção em ilhas estrangeiras, nomeadamente ilhas que não são europeias ou de maioria branca, focando-se, por exemplo, na representação de religiões e práticas Afro-Caribenhas e na figura do zombie. A ilha e o terror também são estudados sob a lente do isolamento diabólico e enquanto local para experimentação científica, como The Island of Lost Souls (Kenton 1934), uma adaptação do The Island of Dr. Mureau de H. G. Wells (1896), e como sítio de criação e/ou encobrimento, como é exemplo o estudo sobre as ‘ilhas Nazis’ desenvolvido por Sedgwick (2018). Contudo, parece ser na Austrália que o estudo da ilha enquanto sítio de terror produz mais frutos, sobretudo estudos sobre a ‘Ozploitation’, isto é, filmes que exploram a paisagem insular australiana enquanto produto da colonização e da desconexão continental (Simpson 2010; Culley 2020; Ryan e Ellison 2020).

M. Francisca Alvarenga

Bibliografia:

CULLEY, NINA. “The Isolation at the Heart of Australian Horror.” Kill Your Darlings, Jul-Dez 2020, 2020, pp. 263-265. Informit, search.informit.org/doi/10.3316/informit.630726095716522.

MARTENS, EMIEL. “The 1930s Horror Adventure Film on Location in Jamaica: ‘Jungle Gods’, ‘Voodoo Drums’ and ‘Mumbo Jumbo’ in the ‘Secret Places of Paradise Island’. Humanities, vol. 10, no. 2, 2021, doi:  10.3390/h10020062.

RYAN, MARK DAVID, AND ELISABETH WILSON. “Beaches in Australian Horror Films: Sites of Fear and Retreat.” Writing the Australian Beach. Local Site, Global Idea, editado por Elisabeth Ellison e Donna Lee Brien. 2020. Cham: Palgrave Macmillan.

SEDGWICK, LAURA. “Islands Of Horror: Nazi Mad Science and The Occult in Shock Waves (1977), Hellboy (2004), And The Devil’s Rock (2011).” Post Script, special issue on Islands and Film, vol. 37, no. 2/3, 2018, pp. 27-39. Proquest, www.proquest.com/openview/00ccdba578653d3fe1a5b2e7b5bfb0b5/1?pq-origsite=gscholar&cbl=44598. Acedido a 27 Janeiro, 2022.

SIMPSON, CATHERINE. “Australian eco-horror and Gaia’s revenge: animals, eco-nationalism and the ‘new nature’.” Studies in Australasian Cinema, vol. 4, no. 1, 2010, pp. 43-54, doi: 10.1386/sac.4.1.43_1.

WILLIAMS, TONY. “White Zombie. Haitian Horror.” Jump Cut: A Review of Contemporary Media, vol. 28, 1983, pp. 18-20. Jump Cut, www.ejumpcut.org/archive/onlinessays/JC28folder/WhiteZombie.html. Acedido a 27 Janeiro, 2022.

Filmografia:

Blood Beach. Realizado por Jeffrey Bloom, The Jerry Gross Organization, 1981.

Doomwatch. Realizado por Peter Sasdy, BBC, 1972.

Fantasy Island. Realizado por Jeff Wadlow, Columbia Pictures, 2020.

Jaws. Realizado por Steven Spielberg, Universal Studies, 1975.

Midnight Mass. Realizado por Mike Flanagan, Netflix, 2021.

Shutter Island. Realizado por Martin Scorsese, Paramount Pictures, 2010.

Sweetheart. Realizado por Justin Dillard, Blumhouse Productions, 2019.

The Bay. Realizado por Barry Levinson, Baltimore Pictures, 2012.

The Island of Lost Souls. Realizado por Erle C. Kenton, Paramount Pictures, 1932.

The Lighthouse. Realizado por Max Eggers, A24, 2019.

The Woman in Black. Realizado por James Watkins, Hammer Film Productions, 2012.

Wicker Man. Realizado por Robin Hardy, British Lion Films, 1973.

Leituras Adicionais

CHIBNALL, STEVE, AND JULIAN PETLEY (eds.). British Horror Cinema. British Popular Cinema. 2002. Londres e Nova Iorque: Routledge.

HUTCHINGS, PETER. Hammer and Beyond: The British Horror Film. 1993. Manchester e Nova Iorque: Manchester University Press.

—. Historical Dictionary of Horror Cinema, 2ª edição. 2018. Londres: Rowman & Littlefield.

—. The A to Z of Horror Cinema. 2009. Lanham, Toronto, Plymouth: The Scarecrow Press.

LEEDER, MURRAY. Horror Film. A Critical Introduction. 2018. Nova Iorque, Londres, Oxford, New Delhi, Sydney: Bloomsbury.

SMITH, GARY A. Uneasy Dreams: The Golden Age of British Horror Films, 1956-1976. 2000. Jefferson, North Carolina, e Londres: McFarland & Company.

WALLER, GREGORY A. (ed.). American Horrors. Essays on the Modern American Horror Film. 1987. Urbana e Chicago: University of Illinois Press.

Cenáculo

            O Cenáculo foi um grupo de tertúlia que se reunia no Golden Gate[1], fundado por João dos Reis Gomes, Pe. Fernando Augusto da Silva e Alberto Artur Sarmento, que se tornou relevante pelas ideias apresentadas, embora, até ao momento não se conheça atas ou documentos oficiais da tertúlia que nos permitam avaliar, objetivamente, o debate intelectual. Quanto aos membros constituintes e sabendo da pouca falta de espaço para a aceitação de novos elementos, Joana Góis dá conta de 24 membros (Góis, 2015: 24-25), entre eles o filho de João dos Reis Gomes, Álvaro Reis Gomes.

O Visconde do Porto da Cruz também testemunha o facto da pouca abertura do grupo às novas gerações: “Em volta do ‘Cenáculo’ apareciam curiosos que não se afoitavam a aproximar-se de centro tão restrito, onde, especialmente, Reis Gomes e o Padre Fernando da Silva, não viam com bons olhos o advento de novos valores” (Porto da Cruz, 1953: 12).

Joana Góis partilha da opinião do Visconde e acrescenta que a tertúlia era um mistério em termos de ação coletiva, mas expressava-se muito bem pelo papel das suas individualidades: “A ‘misteriosa’ geração reunia-se em silêncio e permaneceu, acima de tudo, na esfera privada e sem expressão pública dos seus trabalhos” (Góis, 2015: 21).

            Os elementos do Cenáculo gravitam em torno da edição de dois periódicos dirigidos pelo Major João dos Reis Gomes, Heraldo da Madeira e Diário da Madeira, respetivamente, cujas orientações se aproximam de assuntos relacionados com a autonomia, o regionalismo e a história, a literatura, as tradições e a política afetas ao arquipélago madeirense, tudo sob a égide de um certo conservadorismo e patriotismo, mas que não impede a edificação e defesa de uma identidade madeirense.

            Cremos que a ação mais marcante do Cenáculo, enquanto coletividade, é a formação da Mesa do Centenário, com o objetivo de proceder às celebrações dos 500 anos da Madeira. Sempre com a intenção de uma comemoração de âmbito nacional, a ação dos membros da Mesa do Centenário fez com que se lançasse o desafio de modernizar o Funchal, de modo a dignificar o palco do evento.

Entre o Cenáculo e a Mesa do Centenário parece ter havido uma transição natural e, a partir das posições pensadas e publicitadas no Diário da Madeira, fez-se o programa comemorativo do Centenário madeirense. A “Geração do Cenáculo” logrou acrescentar ao acontecimento uma fundamentação cultural, o que despoletou uma atmosfera de conflito com a política da metrópole, o que fez com que, entre dezembro de 1922 e janeiro de 1923, Lisboa não se fizesse representar, apesar das várias comissões de âmbito internacional.

O facto acabou por ser infrutífero pela falta de sustentabilidade argumentativa em relação à identidade madeirense porque, de acordo com Nelson Veríssimo, “Faltaram intelectuais que exaltassem esses princípios que congregaram vontades e animaram a condução de populações por entusiásticos guias” (Veríssimo, 1985: 232). Após os festejos, os cenaculistas também foram vozes participativas na Comissão de Estudo para as Bases da Autonomia da Madeira.

A linha de pensamento do Cenáculo aproxima-se, pelo que podemos avaliar dos seus membros, pelos jornais e pela ação da Mesa do Centenário, de uma identidade madeirense próxima dos valores pátrios (povoamento português, enaltecimento do elemento luso) e não tanto o cosmopolitismo também presente no sentir madeirense[2].

            As reuniões e as ideias do “ninho da águia” não deixaram de ser alvo de críticos que sentiram fascínio pelo grupo: “[Reis Gomes] Vindo do labirinto da vista da cidade, depois de haver feito a sua longa jornada profissional diária – […] – encontrava no íntimo cavaco com amigos, reunidos numa das salas do hotel Golden Gate, o benéfico oásis para o seu descanso físico e intelectual” (Vieira, 1950: 18). Em relação à literatura, João dos Reis Gomes e a “geração do Cenáculo” tornaram-se precursores de intelectuais que, nos anos 40, veem “na narrativa de ficção com forte cunho regionalista” a possibilidade “de constituir uma história, uma memória, uma biblioteca, uma identidade cultural forte para as gerações futuras da Ilha” (Santos, 2008: 569).

Paulo César Vieira Figueira

Bibliografia

Góis, Joana Catarina Silva (2015). A Geração do Cenáculo e as Tertúlias Intelectuais Madeirenses (da I República aos anos 1940) [dissertação de mestrado/texto policopiado]. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Gouveia, Horácio Bento de (1952). Reis Gomes – Homem de Letras. In Das Artes e Da História da Madeira, nº 13. Funchal, 29-31.

Gouveia, Horácio Bento de (1969). O académico e escritor João dos Reis Gomes. In Panorama, nº 29. Lisboa, 6-9.

Figueira, Paulo (2021). João dos Reis Gomes: contributo literário para a divulgação da História da Madeira [tese de doutoramento/texto policopiado]. Funchal: Universidade da Madeira.

Pestana, César (1952). Academias e tertúlias literárias da Madeira – “O Cenáculo”. In Das Artes e da História da Madeira, vol. II, nº 38. Funchal, 21-23.

Porto da Cruz, Visconde (1953). Notas & Comentários Para a História Literária da Madeira, 3º Período: 1910-1952, vol. III. Funchal: Câmara Municipal do Funchal.

Salgueiro, Ana (2011). Os imaginários culturais na construção identitária madeirense (implicações cultura/economia/relações de poder). In Anuário do Centro Estudos e História do Atlântico, nº 3. Funchal: CEHA, 184-204.

Santos, Thierry Proença dos (2008). Gerações, antologias e outras afinidades literárias: a construção de uma identidade cultural na Madeira. In Dedalus, nº 11-12. Lisboa: APLC/Cosmos, 559-582.

Veríssimo, Nelson (1985). Em 1917 a Madeira reclama Autonomia. In António Loja (dir.). Atlântico, nº 3. Funchal: Eurolitho, 230-233.

Vieira, G. Brazão (1950). Um grande vulto que a morte levou: João dos Reis Gomes. In Das Artes e da História da Madeira, nº 2. Funchal, 17-19.


[1] O Golden Gate, conhecido como uma das “esquinas do mundo”, nas palavras de Ferreira de Castro, e devido à sua situação geográfica, perto da Sé do Funchal, do porto, do Palácio de São Lourenço e da Estátua de Zarco, é um famoso espaço de restauração que favorece a passagem de cidadãos de todas as partes do mundo principalmente pela sua esplanada, algo ainda hoje verificável.

[2] Cf. Ana Salgueiro, “Os imaginários culturais na construção identitária madeirense (implicações cultura/economia/relações de poder)”, 184-204.

José Tolentino Mendonça

O poeta-ilha que conjuga a infância insular, as vicissitudes insulanas, a maturidade de um pensamento que questiona a existência humana com esse lugar sagrado, a ilha física em pleno Atlântico, apresenta-se em Os dias contados: “No princípio era a ilha/embora se diga/o Espírito de Deus/abraçava as águas” (Mendonça, 1990: 9).

Natural de Machico, Madeira (15 de dezembro de 1965), com um período da infância vivido em Angola, José Tolentino Mendonça tem vindo a destacar-se na literatura e na vida eclesiástica. Da sua formação, merece relevo os estudos em Ciências Bíblicas (Roma) e o doutoramento em Teologia, na Universidade Católica Portuguesa, onde exerceu o cargo de vice-reitor e dirigiu o Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião.

            O seu pensamento tem vindo a afirmar-se no panorama internacional, ao ser reconhecido pelo Vaticano como consultor do Pontifício Conselho para a Cultura. Na exposição “Lo splendore della verità, la bellezza della carità” (“O Esplendor da Verdade, a Beleza da Caridade”), comemoração dos 60 anos da ordenação de Bento XVI, em 2011, Tolentino Mendonça presenteou o Bispo de Roma com o poema “O Mistério está todo na infância”.

            Em 2018, o Papa Francisco indicou o sacerdote madeirense para dirigir o retiro espiritual da Quaresma, organizando a reflexão “O elogio da sede”, que daria origem à obra homónima O elogio da sede. Nesse ano, foi nomeado Arquivista e Bibliotecário da Santa Igreja Romana e ordenado bispo.

            A 5 de outubro de 2019, o Papa Francisco presidiu ao Consistório que nomeou 10 novos cardeais, de acordo com a vocação missionária da Igreja. Entre eles, Tolentino Mendonça. Já condição de cardeal, em 2021, foi nomeado pelo Sumo Pontífice como membro da Congregação para a Evangelização dos Povos, que acompanha a vida das comunidades católicas nos chamados países de missão.

            A produção escrita de José Tolentino Mendonça divide-se na do ensaísta, ligada à sua vocação de teólogo e de pensador sobre os temas e os textos de tradição religiosa – e não só – e na do poeta, em que se torna incontornável a sua ligação à memória, à infância, à ilha e à interrogação do ser perante o mundo contemplado.

Dentro do perfil do pensador ensaísta, como tradutor, revisor e comentador de texto, José Tolentino Mendonça participa do projeto Bíblia Ilustrada (Assírio & Alvim). A vertente do pensador é muito bem explícita na introdução à tradução do hebraico de Cântico dos Cânticos, com ilustrações de Ilda David’ (1997, 1ª edição). Na introdução, José Tolentino Mendonça adverte-nos para a plena humildade intelectual e ôntica do seu pensamento: “E, porque não se teme enunciar o sentido das palavras, é que nos podemos abrir à revelação escatológica do silêncio guardado entre elas. O silêncio de Deus” (Mendonça, 1999: 14).

Como poeta, José Tolentino Mendonça é, de acordo com a crítica, uma das vozes mais originais da atual literatura portuguesa. Ana Margarida Falcão Seixas defende que Tolentino Mendonça entrega ao leitor uma aura mística em que “o sujeito mantém um estatuto de elemento intermédio entre o divino e o mundo, mas quase sempre perspectivado através de uma voz que se eleva numa pergunta, numa procura” (Seixas, 2003: 418). A sua poética completa-se em torno de interrogações, cujo motivo poderá “ter origem tanto na evocação de uma personagem ou episódio bíblico como no contar das recordações da pureza perdida da infância quase imaculada como, ainda, na interrogação acerca dos episódios da vida quotidiana” (Seixas, 2003: 418-9), a que se junta a vertente insular, onde se espraia o seu sentir poético. Facultada pela memória, a recordação dos lugares insulanos alberga, na subtil lembrança da ilha, a contemplação de um lugar edificador da humildade intelectual e ôntica: “A intertextualidade da sua poesia com os escritos sagrados não secundariza a presença da sensualidade mística e da reflexão sobre o quotidiano, muitas vezes subtilmente evocadoras da nostalgia da terra natal” (Falcão, 2011: 112).

A reunião entre o pensamento ensaístico, poético e o pulsar humano, materializa-se na seguinte estrofe de “O mistério está todo na infância”: “O mistério está todo na infância [a ilha física e espiritual, a ilha atlântica, cuja representação é o sujeito]:/é preciso que o homem siga/o que há de mais luminoso/à maneira da criança futura”[1].

            Da bibliografia, entre ensaios e títulos poéticos, destacamos: Um Deus que dança, Rezar de olhos abertos, O que é amar um país, A construção de Jesus, A mística do instante, Histórias escolhidas da Bíblia, Os Dias Contados, Longe não sabia, Estrada branca, Estação central ou A papoila e o monge.

            A distinção de José Tolentino Mendonça é, também, evidenciada pelos prémios nacionais e internacionais: Cidade de Lisboa de Poesia (1998), PEN Clube de Ensaio (2005), Res Magnae, para obras ensaísticas (2015), Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes APE (2015), Grande Prémio APE de Crónica (2016) e o prestigiado Capri-San Michele (2017).


[1] In “O mistério está todo na infância”: poema de José Tolentino Mendonça para Bento XVI. In Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura. Acesso digital: https://www.snpcultura.org/o_misterio_esta_todo_na_infancia_poema_jose_tolentino_mendonca_bento_xvi.html.

Paulo César Vieira Figueira

Bibliografia

Falcão, Ana Margarida (2011). O Funchal na poesia insular do séc. XV ao séc. XX. In Funchal (d)escrito: ensaios sobre representações literárias da cidade. Vila Nova de Gaia: 7 Dias 6 Noites, 77-113.
Figueira, Paulo (2020). José Agostinho Baptista, “le sentiment de soi”. In TRANSLOCAL. Culturas Contemporâneas Locais e Urbanas, nº 5. Funchal: UMa-CIERL/CMF/IA. Acesso digital: https://translocal.cm-funchal.pt/wp-content/uploads/2019/05/JoseAgostinhoBaptista-le-sentiment-de-soit5.pdf. Consultado a 21-12-2021.
Figueira, Paulo (2008). Percursos da subjetividade pós-modernista: um contributo para a análise das poéticas de José Agostinho Baptista e Eduardo White [dissertação de mestrado]. Funchal: Universidade da Madeira.
Magalhães, Joaquim Manuel (1989). Um pouco da morte. Lisboa: Presença.
Mendonça, José Tolentino (2000). Um sopro, uma leve pancada no coração. In A Phala – José Agostinho Baptista, nº 81. Acesso digital: https://joseagostinhobaptista.com/a-phala.html. Consultado a 21-12-2021.
Seixas, Ana Margarida Falcão (2003). Os Novos Shâmanes. Um Contributo para o Estudo da Narratividade na Poesia Portuguesa mais recente [tese de doutoramento]. Funchal: Universidade da Madeira.

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