Poucos locais dependem tanto da sua visão como as ilhas, onde tudo se passa com efeito como se coisa e representação só formassem um, por uma operação que faria corresponder imediatamente o real à sua imagem. Vê-se a ilha estar no mundo ao mesmo tempo que desperta via todo um imaginário. Identificamo-la ao mesmo tempo que a começamos a compreender. Uma das razões do seu mito é a sua centralidade. Se a ilha é, desde a Antiguidade, apresentada como um umbigo (omphalos), é não somente porque representa, em pequeno, o Ecumene cercado de água, mas porque indica a sua origem. Ora, este berço da ilha, onde a mitologia faz nascer Zeus (em Creta), Apolo (em Delos), Afrodite (em Citera), é também o túmulo que Böcklin pinta no seu Ilha dos mortos. Uma ideia de origem desemboca, portanto na noção de ciclo. E falar de umbigo leva além disso a mencionar o cordão que é a ilha uma vez considerada já não na sua singularidade, mas na sua globalidade de arquipélago, onde a centralidade dá lugar então ao descentramento. Se bem que nunca se acabe por dar a volta à ilha, ao mesmo tempo total e finita, fragmentária e descontínua. Aí encontra-se uma explicação do sucesso do arquétipo insular: a sua ambivalência, ou antes a sua reversibilidade.
É por inversão que o vocábulo “arquipélago” (Aigaion pelagos, etimologicamente o mar Egeu) já não designa hoje o continente “mar”, mas sim o conteúdo “ilhas” ou que inversamente a palavra Mediterrâneo não designava o mar do mesmo nome, mas, literalmente, o que se encontra no meio das terras. É um pouco do mesmo modo que a utopia, género impossível de dissociar da ilha com a qual nasceu, não pode ser encarada sem postular simultaneamente a sua realidade espacial e a sua ficção de lugar situado em lado nenhum. Ou-topos, aliás dito “não lugar”. Mas colocar a negação volta – tal é o seu paradoxo – a negá-la. Não é que a utopia não esteja em nenhum lugar, é que ela é o lugar do seu não-lugar. É da sua própria natureza ser outro, e o seu em parte nenhuma ser um outro lugar, ou até mesmo um nenhum outro lugar – uma realidade de ficção condicionada por um vazio onde se constituirá, num jogo de palavras, o melhor dos mundos possíveis (eu-topos)1.
Sabe-se que as páginas do manuscrito que se presume informar-nos sobre as coordenadas da ilha da Utopia de Thomas Moore (1516) desapareceram, que Raphaël Hythloday, viajante e narrador utopiano do livro, está inconsciente durante a sua chegada a uma terra desconhecida e que, como se isso não fosse suficiente, o acesso de tosse de um criado impede, no Livro 1, que se ouça uma primeira vez a posição por palavras que são apenas sussurradas. O lugar da Utopia continuará sem localização. Só a narração, depois de o narrador ter abandonado a ilha, atestará a veracidade desta, pela ficção. É o que a restitui
que a institui. A utopia faz do discurso uma condição do espaço e é o livro epónimo, aqui, que qualifica não somente a ilha, mas também, logo, qualquer género utópico.
Um primeiro ato utópico é cortar o istmo ligando a futura ilha ao continente. Este movimento de fundação geográfica (um corte logo seguido de um fecho) é completado pela nomeação do local desse tipo segundo o nome do seu fundador, Utopus, com o qual ele se confunde como um lugar fundado no que o denomina, um lugar cuja configuração se apresenta em anfiteatro e constitui a ilha em palco. Um estreito sucede ao istmo, invertendo a continuidade terrestre antiga em solução de continuidade líquida. Um rochedo, “visível de muito longe”, realiza em seguida uma reduplicação por encaixamento diminutivo. (Este dispositivo “encaixado” é redobrado pela menção de um golfo “imenso” em forma de “grande lago” interior). No centro da ilha, (no seu “umbigo”): uma cidade servindo de capital. Um rosário de faróis escalonado em todo o território insular, enfim, confere à ilha uma visibilidade completa. “(…) a ilha de Thomas Moore oferece-se (…) toda inteira como uma carta”2.
Efeito de fundação: a ilha é um novo mundo. Efeito de condensação: a ilha é um pequeno mundo. Efeito de reduplicação: a ilha é um mundo em espelho. Efeito de nomeação: a ilha é um monograma3. Efeito de apropriação: a ilha torna-se apropriada para a realização de um poder e de um saber. Efeito de modelização: a ilha é um mundo imagético, que importa, em todos os seus pontos ver ao mesmo tempo como uma carta, uma cena, um quadro. Mas este mundo outro da ilha é o nosso, um Mundus alter et idem, tal como define o título de uma utopia de Joseph Hall, escrita em 1605. “Reter-se-á sobretudo como critério decisivo da insularidade a obrigação de pensar a ilha na sua secundariedade mais do que na sua singularidade. Inseparável da referência ao que ela não é, a temática da ilha estaria necessariamente associada à relação dialética que esta alimenta com o espaço continental”4.
Assim se explica que a bipolaridade, não somente da utopia (não há utopia sem distopia…), mas do significado da ilha em geral(edénico/apocalítico, erótico/eremítico, histórico/ideológico, etc.), apenas tenha como equivalente a sua reversibilidade. Razão pela qual, à noção de diferença ou de desvio, substituir-se-á à noção de neutro ou de intervalo. Ou de heterotopias: “tipos de contralocalização, tipos de utopias efetivamente realizadas nas quais as localizações reais, todas as outras localizações que se podem encontrar no interior da cultura são ao mesmo tempo representadas, contestadas e invertidas, tipos de lugares que estão fora de todos os lugares, embora porém sejam efetivamente localizáveis”5.
[1] Ver Louis Marin, Utopiques : jeux d’espaces, Paris, Éditons de Minuit, 1973.
2 Jean-Michel Racault, Robinson & Compagnie, aspects de l’insularité politique de Thomas More à Michel Tournier, Paris, Éditions Pétra, 2010, p. 28 (sublinhado no texto).
3 Monograma é o termo empregue por Frank Lestringant para indicar a singularidade do paradigma insular. Voir Le Livre des îles, atlas et récits insulaires de la Genèse à Jules Verne, Genève, Droz, 2002, p. 333-334.
4 J.-M. Racault, Ibid., p. 16. Sublinhado no texto.
5 Michel Foucault, « Des espaces autres », conferência no Cercle d’études architecturales (14 março 1967), in Architecture, Mouvement, Continuité, n° 5 (outubro 1984), p. 46-49. Retomado em Dits et écrits II, Paris, Quarto Gallimard 2001, p. 1574-1575.