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José Tolentino Mendonça

O poeta-ilha que conjuga a infância insular, as vicissitudes insulanas, a maturidade de um pensamento que questiona a existência humana com esse lugar sagrado, a ilha física em pleno Atlântico, apresenta-se em Os dias contados: “No princípio era a ilha/embora se diga/o Espírito de Deus/abraçava as águas” (Mendonça, 1990: 9).

Natural de Machico, Madeira (15 de dezembro de 1965), com um período da infância vivido em Angola, José Tolentino Mendonça tem vindo a destacar-se na literatura e na vida eclesiástica. Da sua formação, merece relevo os estudos em Ciências Bíblicas (Roma) e o doutoramento em Teologia, na Universidade Católica Portuguesa, onde exerceu o cargo de vice-reitor e dirigiu o Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião.

            O seu pensamento tem vindo a afirmar-se no panorama internacional, ao ser reconhecido pelo Vaticano como consultor do Pontifício Conselho para a Cultura. Na exposição “Lo splendore della verità, la bellezza della carità” (“O Esplendor da Verdade, a Beleza da Caridade”), comemoração dos 60 anos da ordenação de Bento XVI, em 2011, Tolentino Mendonça presenteou o Bispo de Roma com o poema “O Mistério está todo na infância”.

            Em 2018, o Papa Francisco indicou o sacerdote madeirense para dirigir o retiro espiritual da Quaresma, organizando a reflexão “O elogio da sede”, que daria origem à obra homónima O elogio da sede. Nesse ano, foi nomeado Arquivista e Bibliotecário da Santa Igreja Romana e ordenado bispo.

            A 5 de outubro de 2019, o Papa Francisco presidiu ao Consistório que nomeou 10 novos cardeais, de acordo com a vocação missionária da Igreja. Entre eles, Tolentino Mendonça. Já condição de cardeal, em 2021, foi nomeado pelo Sumo Pontífice como membro da Congregação para a Evangelização dos Povos, que acompanha a vida das comunidades católicas nos chamados países de missão.

            A produção escrita de José Tolentino Mendonça divide-se na do ensaísta, ligada à sua vocação de teólogo e de pensador sobre os temas e os textos de tradição religiosa – e não só – e na do poeta, em que se torna incontornável a sua ligação à memória, à infância, à ilha e à interrogação do ser perante o mundo contemplado.

Dentro do perfil do pensador ensaísta, como tradutor, revisor e comentador de texto, José Tolentino Mendonça participa do projeto Bíblia Ilustrada (Assírio & Alvim). A vertente do pensador é muito bem explícita na introdução à tradução do hebraico de Cântico dos Cânticos, com ilustrações de Ilda David’ (1997, 1ª edição). Na introdução, José Tolentino Mendonça adverte-nos para a plena humildade intelectual e ôntica do seu pensamento: “E, porque não se teme enunciar o sentido das palavras, é que nos podemos abrir à revelação escatológica do silêncio guardado entre elas. O silêncio de Deus” (Mendonça, 1999: 14).

Como poeta, José Tolentino Mendonça é, de acordo com a crítica, uma das vozes mais originais da atual literatura portuguesa. Ana Margarida Falcão Seixas defende que Tolentino Mendonça entrega ao leitor uma aura mística em que “o sujeito mantém um estatuto de elemento intermédio entre o divino e o mundo, mas quase sempre perspectivado através de uma voz que se eleva numa pergunta, numa procura” (Seixas, 2003: 418). A sua poética completa-se em torno de interrogações, cujo motivo poderá “ter origem tanto na evocação de uma personagem ou episódio bíblico como no contar das recordações da pureza perdida da infância quase imaculada como, ainda, na interrogação acerca dos episódios da vida quotidiana” (Seixas, 2003: 418-9), a que se junta a vertente insular, onde se espraia o seu sentir poético. Facultada pela memória, a recordação dos lugares insulanos alberga, na subtil lembrança da ilha, a contemplação de um lugar edificador da humildade intelectual e ôntica: “A intertextualidade da sua poesia com os escritos sagrados não secundariza a presença da sensualidade mística e da reflexão sobre o quotidiano, muitas vezes subtilmente evocadoras da nostalgia da terra natal” (Falcão, 2011: 112).

A reunião entre o pensamento ensaístico, poético e o pulsar humano, materializa-se na seguinte estrofe de “O mistério está todo na infância”: “O mistério está todo na infância [a ilha física e espiritual, a ilha atlântica, cuja representação é o sujeito]:/é preciso que o homem siga/o que há de mais luminoso/à maneira da criança futura”[1].

            Da bibliografia, entre ensaios e títulos poéticos, destacamos: Um Deus que dança, Rezar de olhos abertos, O que é amar um país, A construção de Jesus, A mística do instante, Histórias escolhidas da Bíblia, Os Dias Contados, Longe não sabia, Estrada branca, Estação central ou A papoila e o monge.

            A distinção de José Tolentino Mendonça é, também, evidenciada pelos prémios nacionais e internacionais: Cidade de Lisboa de Poesia (1998), PEN Clube de Ensaio (2005), Res Magnae, para obras ensaísticas (2015), Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes APE (2015), Grande Prémio APE de Crónica (2016) e o prestigiado Capri-San Michele (2017).


[1] In “O mistério está todo na infância”: poema de José Tolentino Mendonça para Bento XVI. In Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura. Acesso digital: https://www.snpcultura.org/o_misterio_esta_todo_na_infancia_poema_jose_tolentino_mendonca_bento_xvi.html.

Paulo César Vieira Figueira

Bibliografia

Falcão, Ana Margarida (2011). O Funchal na poesia insular do séc. XV ao séc. XX. In Funchal (d)escrito: ensaios sobre representações literárias da cidade. Vila Nova de Gaia: 7 Dias 6 Noites, 77-113.
Figueira, Paulo (2020). José Agostinho Baptista, “le sentiment de soi”. In TRANSLOCAL. Culturas Contemporâneas Locais e Urbanas, nº 5. Funchal: UMa-CIERL/CMF/IA. Acesso digital: https://translocal.cm-funchal.pt/wp-content/uploads/2019/05/JoseAgostinhoBaptista-le-sentiment-de-soit5.pdf. Consultado a 21-12-2021.
Figueira, Paulo (2008). Percursos da subjetividade pós-modernista: um contributo para a análise das poéticas de José Agostinho Baptista e Eduardo White [dissertação de mestrado]. Funchal: Universidade da Madeira.
Magalhães, Joaquim Manuel (1989). Um pouco da morte. Lisboa: Presença.
Mendonça, José Tolentino (2000). Um sopro, uma leve pancada no coração. In A Phala – José Agostinho Baptista, nº 81. Acesso digital: https://joseagostinhobaptista.com/a-phala.html. Consultado a 21-12-2021.
Seixas, Ana Margarida Falcão (2003). Os Novos Shâmanes. Um Contributo para o Estudo da Narratividade na Poesia Portuguesa mais recente [tese de doutoramento]. Funchal: Universidade da Madeira.