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Categoria: Personalia

Orlanda Amarílis

Orlanda Amarílis Lopes Rodrigues Fernandes Ferreira foi uma escritora cabo-verdiana, nascida na ilha de Santiago, a 8 de outubro de 1924. No Mindelo (ilha de São Vicente), completou o ensino básico e secundário, antes de passar ao Estado Português de Goa, onde terminou os estudos para o Magistério Primário. Já em Lisboa, formou-se em Ciências Pedagógicas, na Universidade de Lisboa. Veio a falecer na capital portuguesa a 1 de fevereiro de 2014.

As letras foram sempre uma presença na sua vida, através do marido, o escritor Manuel Ferreira (Leiria, 18-7-1917/Linda-a-Velha, 17-3-1992), estudioso das literaturas e culturas africanas lusófonas, autor de No Reino de Caliban e A aventura crioula, do pai, Armando Napoleão Rodrigues Fernandes (Brava, 1-7-1889/Praia, 19-6-1969), que publicou o primeiro dicionário crioulo-português, O Dialecto Crioulo: Léxico do Dialecto Crioulo do Arquipélago de Cabo Verde, e de Baltazar Lopes da Silva (São Nicolau, 23-4-1907/Lisboa, 28-5-1989), autor de Chiquinho e fundador da revista Claridade.

Orlanda Amarílis, como membro da Academia Cultivar, fundada por alunos do Liceu Gil Eanes, e colaboradora da revista Certeza (1944), pertenceu à Geração de Certeza, cuja pretensão principal é problematizar o isolamento do arquipélago de Cabo Verde e das ilhas entre si, com o propósito edificador da cultura e identidade cabo-verdianas: “os escritores da Geração de Certeza propõem fincar os pés na terra e assumem um compromisso com a ação e a mudança, a partir, sobretudo, de textos literários que privilegiem a reconstrução da identidade cabo-verdiana e o combate à opressão” (Deus, 2020: 75-76).

Em relação à Geração de Certeza e suposta problemática com os claridosos, Orlanda Amarílis fala de um trabalho de continuidade:

quando apareceu a Certeza, não foi para combater a Claridade como ouvi algures. Até já ouvi que Certeza não foi marco nenhum. No entanto, para nós [os membros da Academia Cultivar], Certeza viria trazer algo de novo. Havia um pulsar diferente dentro de nós, de uma geração posterior, portanto mais recente que os fundadores da Claridade. Fundar Certeza foi dar continuidade ao que a Claridade tinha iniciado. (Laban, 1992: 271-272)

Com o tempo, Amarílis tornou-se um dos mais importantes rostos femininos da literatura cabo-verdiana, expressando, na sua obra, a mulher cabo-verdiana e a diáspora. As suas histórias revelam um importante contributo para o registo e divulgação do património imaterial de Cabo Verde.

Aquando do regresso, após uma longa ausência, relembra a sua insularidade perdida, procurando nesse tempo de afastamento físico a força que a fez escrever e divulgar a vida das ilhas, mesmo na “tontice ingénua” de poder reviver esse tempo:

eu fui colocada na posição de procura de um universo perdido e, se essa rotura existiu virtualmente, foi bom, porque me obrigou a escrever. No entanto, o meu clima emocional de então não tem razão de ser neste momento. É uma tontice ingénua pensarmos ser possível, ao fim de tantos anos de ausência, reviver as emoções de então. […]. Quando há alguns anos voltei a Cabo Verde, perante mim espalharam-se as cinzas do vulcão que foi a minha vida até aos dezasseis anos. (Laban, 1992: 263)

Como obra mais marcante consideramos Cais do Sodré té Salamansa (1974; 1991), cujo título é uma referência a Lisboa e à ilha de São Vicente, mais precisamente à povoação situada a nordeste do Mindelo. O conjunto de sete contos dá a conhecer as facetas que apontamos nos contos de Orlanda Amarílis, com relevância para a diáspora, a mulher e o sentir cabo-verdiano do abandono e regresso às ilhas, num percurso iniciado em “Cais do Sodré” e terminado em “Salamansa”.

Com personagens que encarnam as ilhas, pela identidade, pela linguagem (expressões, formas de tratamento, canções, hábitos do quotidiano), pela dificuldade e agrura da vida, e pela subtileza dicotómica, física e figurada, entre a personagem que sai do espaço do arquipélago e a que permanece, “estando em exílio, contrapõem a todo tempo a memória de sua identidade cabo-verdiana às modificações causadas pela distância espacial e temporal, e essa distância vai se inserindo nas suas filiações identitárias” (Silva, 2010: 63), Orlanda Amarílis oferece uma reflexão sobre “questões importantes do cenário sociocultural cabo-verdiano como, por exemplo, a ressignificação da identidade cultural, a violência de gênero, a opressão sofrida pelas mulheres, a solidão, a emigração” (Deus, 2020: 80).

De Cais do Sodré té Salamansa, destacamos o que podemos considerar uma síntese da escrita de Orlanda Amarílis. Na parte final do conto “Salamansa”, Antoninha “garganteia com sabura” (Amarílis, 1991: 82) uma canção em crioulo, que serve de mote para invocar a praia de Salamansa, a comunhão com o mar e a emigrada Linda, menina da “rua do Cavoquinho” (Amarílis, 1991: 80), que simboliza as dificuldades da vida das mulheres das ilhas: “Oh, Salamansa, praia de ondas soltas e barulhentas como meninas intentadas em dia de S. João. Oh, Salamansa, de peixe frito nos pratos cobertos no fundo dos balaios e canecas de milho ilhado por titia em caldeiras com areia quente. Areia de Salamansa, Linda a rolar na areia” (Amarílis, 1991: 82).

Das obras da autora, cabe-nos referir, além de Cais do Sodré té Salamansa, Ilhéu dos pássaros (1982), A casa dos Mastros (1989), Facécias e Peripécias (1990), A tartaruguinha (1997).

Paulo César Vieira Figueira

Bibliografia

Amarílis, Orlanda (1991). Cais do Sodré té Salamansa. Linda-a-Velha: ALAC.

Deus, Lílian Paula Serra e (2020). Orlanda Amarílis, Vera Duarte e Dina Salústio: a tessitura da escrita de autoria feminina na ficção cabo-verdiana. In Regina Dalcastagnè (Dir.). Veredas – Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, nº 33. Coimbra: Associação Internacional de Lusitanistas. 74-87.

Figueira, Paulo (2014).Estudo Lexical sobre Cais do Sodré Té Salamansa, de Orlanda Amarílis. In Marcelino de Castro (Dir.). Islenha, nº 55. Funchal: DRAC. 63-74.

Laban, Michel (1992). Cabo Verde: encontro com escritores. Vol. I. Porto: Fundação Engenheiro António de Almeida.

Laranjeira, Pires (1987). Formação e desenvolvimento das literaturas africanas de língua portuguesa. In Literaturas africanas de língua portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 15-24.

Mariano, Gabriel (1991). Cultura caboverdeana – ensaios. Lisboa: Vega.

Silva, Elisa Maria Taborda da (2010). Cais do Sodré té Salamansa: o cabo-verdiano em exílio. In Beatriz Junqueira Guimarães (Ed.). Cadernos CESPUC de Pesquisa, nº 19. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 61-70. Trigo, Salvato (1987). Literatura colonial/Literaturas africanas. In Literaturas africanas de língua portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 139-158.

José Tolentino Mendonça

O poeta-ilha que conjuga a infância insular, as vicissitudes insulanas, a maturidade de um pensamento que questiona a existência humana com esse lugar sagrado, a ilha física em pleno Atlântico, apresenta-se em Os dias contados: “No princípio era a ilha/embora se diga/o Espírito de Deus/abraçava as águas” (Mendonça, 1990: 9).

Natural de Machico, Madeira (15 de dezembro de 1965), com um período da infância vivido em Angola, José Tolentino Mendonça tem vindo a destacar-se na literatura e na vida eclesiástica. Da sua formação, merece relevo os estudos em Ciências Bíblicas (Roma) e o doutoramento em Teologia, na Universidade Católica Portuguesa, onde exerceu o cargo de vice-reitor e dirigiu o Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião.

            O seu pensamento tem vindo a afirmar-se no panorama internacional, ao ser reconhecido pelo Vaticano como consultor do Pontifício Conselho para a Cultura. Na exposição “Lo splendore della verità, la bellezza della carità” (“O Esplendor da Verdade, a Beleza da Caridade”), comemoração dos 60 anos da ordenação de Bento XVI, em 2011, Tolentino Mendonça presenteou o Bispo de Roma com o poema “O Mistério está todo na infância”.

            Em 2018, o Papa Francisco indicou o sacerdote madeirense para dirigir o retiro espiritual da Quaresma, organizando a reflexão “O elogio da sede”, que daria origem à obra homónima O elogio da sede. Nesse ano, foi nomeado Arquivista e Bibliotecário da Santa Igreja Romana e ordenado bispo.

            A 5 de outubro de 2019, o Papa Francisco presidiu ao Consistório que nomeou 10 novos cardeais, de acordo com a vocação missionária da Igreja. Entre eles, Tolentino Mendonça. Já condição de cardeal, em 2021, foi nomeado pelo Sumo Pontífice como membro da Congregação para a Evangelização dos Povos, que acompanha a vida das comunidades católicas nos chamados países de missão.

            A produção escrita de José Tolentino Mendonça divide-se na do ensaísta, ligada à sua vocação de teólogo e de pensador sobre os temas e os textos de tradição religiosa – e não só – e na do poeta, em que se torna incontornável a sua ligação à memória, à infância, à ilha e à interrogação do ser perante o mundo contemplado.

Dentro do perfil do pensador ensaísta, como tradutor, revisor e comentador de texto, José Tolentino Mendonça participa do projeto Bíblia Ilustrada (Assírio & Alvim). A vertente do pensador é muito bem explícita na introdução à tradução do hebraico de Cântico dos Cânticos, com ilustrações de Ilda David’ (1997, 1ª edição). Na introdução, José Tolentino Mendonça adverte-nos para a plena humildade intelectual e ôntica do seu pensamento: “E, porque não se teme enunciar o sentido das palavras, é que nos podemos abrir à revelação escatológica do silêncio guardado entre elas. O silêncio de Deus” (Mendonça, 1999: 14).

Como poeta, José Tolentino Mendonça é, de acordo com a crítica, uma das vozes mais originais da atual literatura portuguesa. Ana Margarida Falcão Seixas defende que Tolentino Mendonça entrega ao leitor uma aura mística em que “o sujeito mantém um estatuto de elemento intermédio entre o divino e o mundo, mas quase sempre perspectivado através de uma voz que se eleva numa pergunta, numa procura” (Seixas, 2003: 418). A sua poética completa-se em torno de interrogações, cujo motivo poderá “ter origem tanto na evocação de uma personagem ou episódio bíblico como no contar das recordações da pureza perdida da infância quase imaculada como, ainda, na interrogação acerca dos episódios da vida quotidiana” (Seixas, 2003: 418-9), a que se junta a vertente insular, onde se espraia o seu sentir poético. Facultada pela memória, a recordação dos lugares insulanos alberga, na subtil lembrança da ilha, a contemplação de um lugar edificador da humildade intelectual e ôntica: “A intertextualidade da sua poesia com os escritos sagrados não secundariza a presença da sensualidade mística e da reflexão sobre o quotidiano, muitas vezes subtilmente evocadoras da nostalgia da terra natal” (Falcão, 2011: 112).

A reunião entre o pensamento ensaístico, poético e o pulsar humano, materializa-se na seguinte estrofe de “O mistério está todo na infância”: “O mistério está todo na infância [a ilha física e espiritual, a ilha atlântica, cuja representação é o sujeito]:/é preciso que o homem siga/o que há de mais luminoso/à maneira da criança futura”[1].

            Da bibliografia, entre ensaios e títulos poéticos, destacamos: Um Deus que dança, Rezar de olhos abertos, O que é amar um país, A construção de Jesus, A mística do instante, Histórias escolhidas da Bíblia, Os Dias Contados, Longe não sabia, Estrada branca, Estação central ou A papoila e o monge.

            A distinção de José Tolentino Mendonça é, também, evidenciada pelos prémios nacionais e internacionais: Cidade de Lisboa de Poesia (1998), PEN Clube de Ensaio (2005), Res Magnae, para obras ensaísticas (2015), Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes APE (2015), Grande Prémio APE de Crónica (2016) e o prestigiado Capri-San Michele (2017).


[1] In “O mistério está todo na infância”: poema de José Tolentino Mendonça para Bento XVI. In Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura. Acesso digital: https://www.snpcultura.org/o_misterio_esta_todo_na_infancia_poema_jose_tolentino_mendonca_bento_xvi.html.

Paulo César Vieira Figueira

Bibliografia

Falcão, Ana Margarida (2011). O Funchal na poesia insular do séc. XV ao séc. XX. In Funchal (d)escrito: ensaios sobre representações literárias da cidade. Vila Nova de Gaia: 7 Dias 6 Noites, 77-113.
Figueira, Paulo (2020). José Agostinho Baptista, “le sentiment de soi”. In TRANSLOCAL. Culturas Contemporâneas Locais e Urbanas, nº 5. Funchal: UMa-CIERL/CMF/IA. Acesso digital: https://translocal.cm-funchal.pt/wp-content/uploads/2019/05/JoseAgostinhoBaptista-le-sentiment-de-soit5.pdf. Consultado a 21-12-2021.
Figueira, Paulo (2008). Percursos da subjetividade pós-modernista: um contributo para a análise das poéticas de José Agostinho Baptista e Eduardo White [dissertação de mestrado]. Funchal: Universidade da Madeira.
Magalhães, Joaquim Manuel (1989). Um pouco da morte. Lisboa: Presença.
Mendonça, José Tolentino (2000). Um sopro, uma leve pancada no coração. In A Phala – José Agostinho Baptista, nº 81. Acesso digital: https://joseagostinhobaptista.com/a-phala.html. Consultado a 21-12-2021.
Seixas, Ana Margarida Falcão (2003). Os Novos Shâmanes. Um Contributo para o Estudo da Narratividade na Poesia Portuguesa mais recente [tese de doutoramento]. Funchal: Universidade da Madeira.

José Agostinho Baptista

“Por ti cheguei e parto./A minha casa é onde estás” (Baptista, 1992: 9). Em José Agostinho Baptista a dimensão do lugar-ilha abre-se, por enigmas pessoais, ao mundo do leitor. Com uma vocação insular – física e spiritual – o sujeito apresenta-se como uma geografia errante, medida pelas montanhas, pelo mar ou pelo silêncio da Madeira primordial. A ilha desloca-se como uma casa por outros mosaicos geográficos.
Com um acentuado cunho mnemónico, a partida e a chegada desta poesia será sempre esse lugar idílico, entre os românticos “locus amoenus” e “locus horribilis”, coabitado pelo mar, pelo pai, pelo amor e, sobretudo, pelo sujeito-ilha, na aceção de um não-lugar, tornado o lugar “onde estás”. O processo de escrita de José Agostinho Baptista, com tendência para a recuperação de um modelo romântico, “não é apenas o processo do sentimento ou da memória, é o processo da própria escrita que se constitui em livro” (Magalhães, 1989: 256).
Nascido no Funchal (15 de agosto de 1948), José Agostinho Baptista é reconhecidamente um dos mais importantes poetas portugueses da sua geração. Durante um largo período da sua vida, residiu em Lisboa, tendo sido tradutor de autores essenciais, como W. B. Yeats ou Walt Whitman, e jornalista, em diferentes redações da imprensa da capital portuguesa, A República e Diário de Lisboa. Anteriormente, colaborou com o Comércio do Funchal. Há algum tempo, regressou à Madeira.
Abordar José Agostinho Baptista, impõe falar da sua relação telúrica com a Madeira, raramente harmoniosa, mas, em simultâneo, de uma dependência evidente. Cremos que a ilha é o caminho de uma poética marcada pela busca/epifania da identidade do sujeito, pleno da sua marca insular, a pulsão telúrica. Existe uma clara identificação sujeito poético/ilha com uma viagem iniciática pela nostalgia de um amor primordial, puro e sofredor.
Para Ana Margarida Falcão Seixas, José Agostinho Baptista revela uma forte presença da nostalgia na sua escrita que “conta, em episódios vários e em diversa dimensão narrativa, o exílio de um sujeito em si mesmo, corpo e mente desdobrados em múltiplas variantes que sacralizam o sonho, o devaneio e os vestígios do passado, proporcionando a enunciação de representações essencialmente em função da ausência” (Seixas, 2003: 398), o que aliado à dimensão telúrica revela o sentir ilhéu. A pulsão telúrica, verbalizada no entrosamento sentimental entre sujeito e ilha, “Ele era uma ilha, o basalto sem fim” (Baptista, 1992: 19), dimensiona a perspetiva da insularidade em temas caros à literatura portuguesa, como o exílio, o amor não correspondido, a loucura/devaneio, a nostalgia e a memória.
A figura do pai, ligado à memória da ilha primordial, é também outro leitmotiv, como é o caso de Agora e na hora da nossa morte, “Ninguém cala os tempestuosos rios no fundo/dos meus olhos,/quando penso nos vermes, nas viscosidades/que te procuram através do cetim” (Baptista, 1998: 102), uma longa (não-)oração até ao “Amén” final, ou em poemas como “Memória”, em Deste lado onde.
Outras terras assumem o rosto dessa ilha primordial, sendo a mais significativa o México: “o México, que é caraterizado pela sua essência mais perene, os seus deuses, as suas tatuagens paralelas, que, no universo simbólico e metafórico do Eu, configuram essa nova terra dos pais, um solo pátrio vasto, onde o Eu espraia o seu imaginário, na perspetiva romântica de vastidão e de recriação da originalidade da ilha primeira” .
José Tolentino Mendonça fala da poesia de José Agostinho Baptista como fundamental para a compreensão da Madeira, “a rugosidade do seu tempo, o arrebatamento desmedido da paisagem, as ribeiras incansáveis, o mistério dos frutos, a verdade desamparada do seu silêncio” , porque ess’“A ilha é toda a terra. E, no segredo escuro do seu nome, ela guarda a ambivalência mais significativa” .
Dos livros de José Agostinho Baptista, destacamos: Deste lado onde (1976), O último romântico (1981), Morrer no sul (1983), Autoretrato (1986), O centro do universo (1989), Paixão e cinzas (1992), Canções da terra distante (1994), Debaixo do azul sobre o vulcão (1995), Agora e na hora da nossa morte (1998), Biografia (2000), Afectos (2002), Anjos caídos (2003), Esta voz é quase vento (2004), Quatro luas (2006), Filho pródigo (2008), O pai, a mãe e o silêncio dos irmãos (2009) e Caminharei pelo vale da sombra (2011).
O reconhecimento mediático da sua obra engloba distinções como: o Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique (2001 – Presidência da República) e a Medalha de Distinção atribuída no dia da Região Autónoma da Madeira (2015 – Governo Regional da Madeira). Outros prémios merecem relevo, como são o caso do Pen Club de Poesia (2003), por Anjos Caídos, e o Grande Prémio de Poesia CTT – Correios de Portugal (2004), por Esta Voz é Quase o Vento.

Paulo César Vieira Figueira

Bibliografia

Falcão, Ana Margarida (2011). O Funchal na poesia insular do séc. XV ao séc. XX. In Funchal (d)escrito: ensaios sobre representações literárias da cidade. Vila Nova de Gaia: 7 Dias 6 Noites, 77-113.
Figueira, Paulo (2020). José Agostinho Baptista, “le sentiment de soi”. In TRANSLOCAL. Culturas Contemporâneas Locais e Urbanas, nº 5. Funchal: UMa-CIERL/CMF/IA. Acesso digital: https://translocal.cm-funchal.pt/wp-content/uploads/2019/05/JoseAgostinhoBaptista-le-sentiment-de-soit5.pdf. Consultado a 21-12-2021.
Figueira, Paulo (2008). Percursos da subjetividade pós-modernista: um contributo para a análise das poéticas de José Agostinho Baptista e Eduardo White [dissertação de mestrado]. Funchal: Universidade da Madeira.
Magalhães, Joaquim Manuel (1989). Um pouco da morte. Lisboa: Presença.
Mendonça, José Tolentino (2000). Um sopro, uma leve pancada no coração. In A Phala – José Agostinho Baptista, nº 81. Acesso digital: https://joseagostinhobaptista.com/a-phala.html. Consultado a 21-12-2021.
Seixas, Ana Margarida Falcão (2003). Os Novos Shâmanes. Um Contributo para o Estudo da Narratividade na Poesia Portuguesa mais recente [tese de doutoramento]. Funchal: Universidade da Madeira.

João dos Reis Gomes

João dos Reis Gomes foi um militar madeirense que se evidenciou, na sociedade do seu tempo, como um autor com áreas como o jornalismo, o teatro, a história, o romance, a filosofia, a música e o cinema. A sua formação intelectual beberá do período de transição entre o século XIX e início do século XX, marcado pela vaga de acontecimentos que se sucediam no Continente e na Madeira.

Nascido no Funchal, a 5 de janeiro de 1869, onde veio a falecer, a 21 de janeiro de 1950, ficou conhecido como Major João dos Reis Gomes (como se a patente se associasse ao nome próprio) e reconhecido como professor, escritor e ensaísta consagrado, membro de diversas academias, como a Academia de Ciências de Lisboa, e fundador da delegação da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, no Funchal. Optou, quase sempre, por uma ação no campo da intelectualidade e não tanto em termos de exposição política. Dirigiu dois periódicos, Heraldo da Madeira e Diário da Madeira, que faziam a apologia de uma visão regionalista, autonómica e conservadora, embora imbuídos de um espírito patriótico.

Personalidade inserida numa geração que pugna por uma melhor autonomia para a Madeira, no início do século XX, a vertente insular, quer pelo recurso a temáticas caras ao folclore madeirense, quer à História, faz de Reis Gomes um dos responsáveis pela edificação de uma identidade madeirense.

A sua ação, ligada a uma perspetiva de insularidade assente na autonomia e no regionalismo, levam-no a debates de assuntos sobre a Madeira com a criação da tertúlia “Cenáculo”, a participação na Comissão de Estudo para as Bases da Autonomia da Madeira e a celebração dos 500 anos da Madeira, entre dezembro de 1922 e janeiro de 1923.

Como homem multifacetado no campo da escrita, interessa-nos, sobretudo, o dramaturgo e o romancista, embora também tenha publicado livros de contos. Cremos que é principalmente em A filha de Tristão das Damas, O anel do imperador, O cavaleiro de Santa Catarina e Guiomar Teixeira, que podemos vislumbrar a ligação da sua escrita à ilha e a preocupação com a identidade madeirense.

Um dos bons exemplos desta ligação insular que norteou a escrita literária de João dos Reis Gomes, é o drama histórico Guiomar Teixeira, adaptado do romance histórico A filha de Tristão das Damas, e que reúne os atributos de uma identificação insular e de um grito identitário. Esta peça de teatro é conhecida por se crer ser a primeira, a nível mundial, a fundir, na sua representação, a arte teatral com a arte cinematográfica, sendo atribuído o mérito ao Major[1].

No drama, tal como no romance histórico, o centro da ação é o auxílio madeirense, prestado pelo donatário Simão da Câmara à tomada de Safim, durante o reinado de D. Manuel I. Numa alegoria subtil com a situação vivida na Madeira aquando da autonomia administrativa de 1901, Reis Gomes aponta o exemplo da conquista da praça marroquina como uma forma de expor que uma melhor autonomia resultaria numa região melhor e, em consequência, num país melhor.

Para percebermos os intentos identitários madeirenses e de protesto contra a situação política do arquipélago, a comissão do Quincentenário escolheu a peça Guiomar Teixeira para representação, o que nos parece uma clara alusão à divulgação do território insular. Os atores principais foram Sofia de Figueiredo, no papel de Guiomar Teixeira, e João dos Reis Gomes, no papel de Cristóvão Colombo.

Pelo seu papel, podemos considerar João dos Reis Gomes como um dos edificadores da memória cultural madeirense, no sentido em que a produção literária do autor “estabelece entre o ontem e o hoje, modelando e atualizando de forma contínua as experiências e as imagens de um passado no presente, como recordação geradora de um horizonte de esperanças e de continuidade” (Antunes, 2019: 204). Mesclado com o conceito de memória cultural, encontramos a “madeirensidade”, no sentido em que “A literatura, por exemplo, contribui para a construção da Madeirensidade, mas ao mesmo tempo é também o devir desta que promove a emergência, a afirmação e o desenvolvimento daquilo que podemos designar como literatura madeirense” (Rodrigues, 2015: 167).

No final do diário sobre a peregrinação madeirense de 1926, no original Através da França, Suíça e Itália – Diário de Viagem, o Major João dos Reis Gomes expressava o sentimento de nostalgia em relação à Madeira, “Estou nostálgico […]. Por momentos, ante a visão da pequenina terra [a Madeira], apaga-se-me da memória a lembrança dessa existência de tão grande e variada beleza que eu acabo, febrilmente, de viver” (Reis Gomes, 2020: 223), o que nos parece uma declaração de pertença geográfica e cultural cara a muitos madeirenses.

Da obra de João dos Reis Gomes destacamos: O Theatro e o Actor (1ª ed., 1905, 2ª ed., 1916), Histórias Simples (1907), A Filha de Tristão das Damas (1ª ed., 1909, 2ª ed., 1946, 3ª ed., 1962), Guiomar Teixeira (1ª ed., 1914)[2], A Música e o Teatro (1919), Forças Psíquicas (1925), O Belo Natural e Artístico (1928), Figuras de Teatro (1928), Através da França, Suíça e Itália – Diário de Viagem (1929), Três Capitais de Espanha: Burgos, Toledo, Sevilha (1931), O Anel do Imperador (1934), Natais (1935), O Vinho da Madeira (1937), Casas Madeirenses (1937), O Cavaleiro de Santa Catarina (1941), De Bom Humor… (1942), A Lenda de Loreley – Contada por um Latino (1948), Através da Alemanha – Notas de Viagem (1949) e Viagens (2020)[3].

Paulo César Vieira Figueira

Bibliografia

Antunes, Luísa Marinho (2019). A construção da memória cultural por meio da literatura: alguns aspectos. In Pro-Posições Culturais. São Paulo, 189-211.

Figueira, Paulo (2021). João dos Reis Gomes: contributo literário para a divulgação da História da Madeira [tese de doutoramento/texto policopiado]. Funchal: Universidade da Madeira.

Gouveia, Horácio Bento de (1969). O académico e escritor João dos Reis Gomes. In Panorama, nº 29. Lisboa, 6-9.

Marino, Luís (s.d.). Panorama Literário do Arquipélago da Madeira [texto inédito]. Arquivo Regional da Madeira/Arquivo Luís Marino.

Reis Gomes, João dos (2020). Viagens (Ed. Literária Ana Isabel Moniz). Funchal: Imprensa Académica.

Rodrigues, Paulo (2015). Da Madeirensidade: Contributo para uma reflexão necessária. In Nelson Veríssimo e Thierry Proença dos Santos (orgs.). Universidade da Madeira: 25 anos. Funchal: Universidade da Madeira, 165-190.


[1] O drama foi vertido para italiano por Virgilio Biondi, La Figlia del Vice-Ré, e foi representada pela companhia italiana Vitaliani-Duse, em 1914, no Teatro Municipal do Funchal.

[2] Guiomar Teixeira, além da versão italiana, contou com três edições.

[3] De acordo com Luís Marino, em Panorama Literário do Arquipélago da Madeira, p. 67, devemos acrescentar a esta lista No Laboratório, Psychologia e Pathologia Cerebral (1899), escrito por João dos Reis Gomes, sob o pseudónimo J. Règinard.

João de Melo

Nascido na freguesia Achadinha, município do Nordeste, em São Miguel, Açores, a 4 de fevereiro de 1949, João Manuel de Melo Pacheco é um dos mais reconhecidos representantes da insularidade açoriana.

            Com 11 anos, fixou-se no continente português, onde prosseguiu os estudos no Seminário dos Dominicanos, em Fátima. Acabou expulso, por razões religiosas e políticas. Contudo, fixou-se em Lisboa, onde começou a publicar pequenas narrativas no Diário Popular e no Diário de Lisboa. Durante esta época também colaborou com a geração “Glacial”, homónima do suplemento literário, Glacial – União das letras e das artes, do jornal A União, sediado em Angra do Heroísmo, na Terceira.

            A Guerra Colonial foi uma das etapas marcantes da sua biografia, tendo prestado serviço militar (furriel e enfermeiro), em Angola. Além da infância, a Guerra do Ultramar marca a narrativa de João de Melo, destacando-se, por exemplo, Autópsia de um mar de ruínas (1984).

Após o 25 de Abril, João de Melo licenciou-se em Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, período que considera como decisivo na sua formação como escritor: “Após ter frequentado a Faculdade de Letras, aconteceu uma revolução literária na minha cabeça, no meu espírito. Mudei de linguagem. É nessa fase que me encontro: tento harmonizar o máximo pendor narrativo com a expressão poética da narrativa” (Besse, 2019: 155).

            De acordo com o aspeto insular de algumas narrativas de João de Melo, não podemos descurar a vertente da açorianidade. Onésimo Teotónio Almeida refere-se a este conceito, “insistindo em que a açorianidade é a açorianidade de cada um. Embora existam elementos comuns à maioria dos açorianos […] em diferentes graus de intensidade” (Almeida, 2007: 26), ou seja, o diferente sentir das ilhas não impede que a açorianidade se alie a um sentimento ilhéu que assume um conjunto de elementos que cristalizam o sentir açoriano. Se tivermos por base os exemplos de A divina miséria e Gente feliz com lágrimas, há uma exploração de um sentir particular em relação à Terceira e a São Miguel, respetivamente, mas que se conjugam num conceito superior envolvente do arquipélago: “Eu vi a minha ilha despovoar-se de gente que todos os dias partia para a América. […]. Essa é a história da minha própria família” (Besse, 2019: 155).

            João de Melo aponta na sua escrita a distinção entre o aspeto insular e o aspeto regionalista, considerando que as suas narrativas não devem ser consideradas regionalistas no sentido restrito do conceito, apesar de os Açores serem o centro da universalidade humana presente na sua obra: “De modo que a minha escrita não pode ser considerada expressivamente ‘regionalista’. […]. Fiz dos Açores o meu lugar de todo o mundo: esse mundo real e simbólico a que ouso chamar universalidade da condição humana” (Besse, 2019: 154). Podemos considerar, então, que a prosa de João de Melo “é sobretudo um registo ficcional não só de uma geração, mas a de todos que durante um século viveram a sua tragédia e tentaram recuperar o que lhes restava da sua humanidade face a forças […] deste e do outro mundo” (Freitas, 1998: 119), por entre “uma errância e reencontros, de mitologias e de símbolos bíblicos e históricos” (Freitas, 1998: 119).

            Embora João de Melo seja o autor de várias narrativas de referência, Gente Feliz com Lágrimas é, talvez, a mais conhecida, sendo adaptada para teatro e televisão. Cremos que o romance reúne as principais provocações do conjunto da obra do autor, a insularidade, a infância, a emigração, a memória, além da guerra, porque “Uma ferida ou uma simples dor no olhar, eis o que bem pode definir tudo o que resta de um homem, do seu mundo perdido e de um tempo presente que ainda falta inventar. Só por isso, já lhe tinha valido a pena vir àquela casa dos Açores” (Melo, 1988: 479).

Julgamos que, a João de Melo, se aplica a opinião de Vamberto Freitas, como o autor que nos transporta pelos diferentes estádios das peregrinações humanas, em que nos revemos, enquanto leitores, do ponto de vista individual e coletivo: “só através da errância dos seus narradores poderia vir até nós esta incomparável visão globalizante das tribulações do homem moderno” (Freitas, 1998: 121). Uma errância definida por João de Melo na consciencialização da fórmula ilha/mar: “foi na minha infância, perante o mar dos Açores, que sempre fez algum sentido a oposição ilha/Mundo. Mas nela teve lugar uma definitiva evidência: as ilhas são pequenos continentes; os continentes não são mais do que ilhas muito grandes” (Melo, 2001: 119).

            Da sua bibliografia destacamos: A divina miséria, Gente feliz com lágrimas, Autópsia de um mar em ruínas, O meu mundo não é deste reino, O mar de Madrid, As coisas da alma, Os anos da guerra, Dicionário das paixões, Bem-aventuranças.

O reconhecimento da sua obra materializou-se em prémios como: Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores, Prémio Eça de Queiroz/Cidade de Lisboa, Prémio Cristóvão Colombo (Capitais ibero-americanas), Prémio Fernando Namora/Casino do Estoril, Prémio Antena 1, Prémio “A Balada” e Prémio Dinis da Luz. Em 2021, venceu o Prémio Literário Urbano Tavares Rodrigues, com Livro de vozes e sombras. O Governo Português também reconheceu a relevância intelectual de João de Melo ao convidá-lo para adido cultural da embaixada em Madrid e com a Medalha de Mérito Cultural.

Paulo César Vieira Figueira

Bibliografia

Almeida, Onésimo Teotónio (2007). Sobre o peso da geografia no imaginário literário açoriano. In Jane Tutikian e Luiz Antonio de Assis Brasil (Orgs.).  Mar Horizonte: Literaturas Insulares Lusófonas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 23-32.

Besse, Maria Graciete (2019). João de Melo: entre a memória e a perda. Lajes do Pico: Companhia das ilhas.

Freitas, Vamberto (1998). Mar cavado: da literatura açoriana e de outras narrativas. Lisboa: Edições Salamandra.

Melo, João de (1988). Gente feliz com lágrimas. Lisboa: Círculo de Leitores.

Melo, João de (2001). O mare nostrum ou o mar em nós. In Alberto Vieira (org.). Livro de comunicações do colóquio “Caminhos do mar”. Funchal: Câmara Municipal do Funchal, 118-120. Sousa, Luís Francisco. Açorianidade: conversa com Cláudia Cardoso e Luiz Fagundes Duarte. Acesso digital: https://www.bruapodcasts.com/sapiens/2019/8/31/sapiens-aorianidade-com-cludia-cardoso-e-luiz-fagundes-duarte. Consultado a 10-12-2021

Henrique Teixeira de Sousa

Henrique Teixeira de Sousa é natural de Cabo Verde, ilha do Fogo, onde nasceu na freguesia de São Lourenço, a 6 de setembro de 1919. Veio a falecer, com 87 anos, em Algés, a 3 de março de 2006, vítima de atropelamento. Residia em Oeiras, Portugal, desde a década de setenta do século XX.

Concluiu o curso de medicina na Universidade de Lisboa, em 1945. Além da escrita, a medicina mereceu grande dedicação por parte de Teixeira de Sousa, frequentando cursos de Medicina Tropical e de Nutrição, tendo chegado a prestar serviço em Timor-Leste, na ilha do Fogo e na ilha de São Vicente, antes de voltar para Portugal.

Fruto da sua vivência inter-ilhas e pelo mundo, Henrique Teixeira de Sousa tornou-se um símbolo do sentir cabo-verdiano e da exposição do sentir das ilhas, o que, segundo Ondina Ferreira, o cataloga como “arquipelágico” porque “Os seus textos ensaísticos [e não só] saem desse âmbito mais restrito e pertencem igualmente a todas as ilhas de Cabo Verde”[1].

            De Cabo Verde, e dos primeiros anos de formação deste autor, a sua longevidade permitiu a participação em movimentos culturais que vieram vincar a identidade cabo-verdiana. Desde os claridosos, associados à revista Claridade (1936), à geração da Certeza, identificados com a revista Certeza (1944), Henrique Teixeira de Sousa manteve-se próximo da evolução literária do arquipélago cabo-verdiano numa atitude edificadora da cultura e identidade cabo-verdianas.

Sendo de um tempo em que se que assistiu e participou na luta pela libertação da Guiné-Bissau e Cabo Verde, sob a bandeira do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), algumas das suas obras de referência refletem esse período conturbado e de incertezas para o futuro do arquipélago que, graças ao seu povoamento, diáspora e respetiva História, não era propriamente irmão da Guiné-Bissau e se revia numa posição intermédia entre África e a Europa: “Em Caboverde julgo poder afirmar que o processo de aculturativo desabrochou no florescimento de expressões novas de cultura, mestiças […]; que no arquipélago puderam o negro e o mulato apropriar-se de elementos da civilização europeia e senti-los como próprios” (Mariano, 1991: 47).

Tanto a visão histórico-política, como a mais atenta sensibilidade em relação aos problemas sociais cabo-verdianos (a fome, a emigração) fizeram de Henrique Teixeira de Sousa “um profundo e um fino analista social”[2]. A reformulação destas temáticas fez com que a literatura cabo-verdiana se afirmasse porque foi necessário “ultrapassar a fase folclórica ou regionalista para não continuarmos espartilhados dentro dum círculo restrito de temas mais que esgotados” (Laban, 1992: 207).

            É difícil discernir acerca da sua obra-prima. Entre os contos e os romances destacamos dois, em particular, Contra mar e vento, o seu primeiro livro de contos, e Entre duas bandeiras, romance histórico, por estarem presentes elementos formadores de Cabo Verde, enquanto entidade geográfica, política e cultural.

Em Entre duas bandeiras, por estar próximo de “la memoria politica” (Turano, 1997: 1555), é evidente o debate lançado sobre a identidade insular de Cabo Verde, que não acolhe ou se identifica com a união guineense e, ao longo da obra, o autor aponta elementos de cariz civilizacional que justificam a discussão perante a independência do arquipélago: “Con questo volume lo scrittore apre il dibattito su una questione delicata, quella del passaggio dei poteri dal vecchio regime coloniale al nuovo stato indipendente. Con la presa del potere del P.A.I.C.G. riemergono, attraverso la ‘finzione’ romanzesca, questione politiche che, forse, sarebbe interessante dibattere” (Turano, 1997: 155). Enquanto leitores, concluímos uma maior afinidade com a ideia de uma independência de Cabo Verde fora da esfera da Guiné-Bissau, o que daí resulta um país insular com uma identidade muito própria entre dois continentes edificadores do seu sentir. Este ponto de vista é assumido abertamente pelo próprio Henrique Teixeira de Sousa: “Ora, eu não via que essa unidade [Cabo Verde/Guiné-Bissau] fizesse o mínimo sentido dada a disparidade dos valores culturais entre os dois países. Combati-a veementemente. E a História veio-me dar razão” (Laban, 1992: 202).

            Das obras de Henrique Teixeira de Sousa, cabe-nos referir Contra mar e vento (1972), Ilhéu de contenda (1978), Capitão de Mar e Terra (1984), Xaguate (1987), Djunga (1990), Na Ribeira de Deus (1992), Entre duas Bandeiras (1994), Oh Mar das Túrbidas Vagas (2005). Ilhéu de contenda, Xaguate e Na Ribeira de Deus constituem uma trilogia.

Paulo César Vieira Figueira

Bibliografia

Chabal, Patrick et al. (1996). The postcolonial literature of lusophone Africa. Londres: Hurst & Company.

“Entrevista a Ondina Ferreira – H. Teixeira de Sousa é uma referência incontornável da nossa história cultural”. Acesso digital: https://terranova.cv/index.php/entrevista/6895-h-teixeira-de-sousa-e-uma-referencia-incontornavel-da-nossa-historia-cultural-ondina-ferreira. Consultado a 13-12-2021.

Figueira, Paulo (2012). Entre Duas Bandeiras, de Henrique Teixeira de Sousa: traços para a identidade cabo-verdiana. In Navegações, 194-202.

Laban, Michel (1992). Cabo Verde: encontro com escritores. Vol. I. Porto: Fundação Engenheiro António de Almeida.

Laranjeira, Pires (1987). Formação e desenvolvimento das literaturas africanas de língua portuguesa. In Literaturas africanas de língua portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 15-24.

Mariano, Gabriel (1991). Cultura caboverdeana – ensaios. Lisboa: Vega.

Trigo, Salvato (1987). Literatura colonial/Literaturas africanas. In Literaturas africanas de língua portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 139-158.

Turano, Maria Rosaria (1997). Diaspora Capoverdiana a Lisbona: Memoria Letteraria e Memoria Rituale – Appunti da una Ricerca. In Africana Miscellanea di Studi Extraeuropei. Pisa: Edizioni ETS, 149-159.


[1] In “Entrevista a Ondina Ferreira – H. Teixeira de Sousa é uma referência incontornável da nossa história cultural”. Acesso digital: https://terranova.cv/index.php/entrevista/6895-h-teixeira-de-sousa-e-uma-referencia-incontornavel-da-nossa-historia-cultural-ondina-ferreira.

[2] In “Entrevista a Ondina Ferreira – H. Teixeira de Sousa é uma referência incontornável da nossa história cultural”. Acesso digital: https://terranova.cv/index.php/entrevista/6895-h-teixeira-de-sousa-e-uma-referencia-incontornavel-da-nossa-historia-cultural-ondina-ferreira.

Germano Almeida

Germano Almeida nasceu em 1945, na ilha da Boavista, no arquipélago de Cabo Verde. Como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, formou-se em Direito na Universidade de Lisboa. Regressado a Cabo Verde, exerce advocacia na cidade do Mindelo, ilha de São Vicente, onde vive desde 1979.

Foi um dos fundadores da Ponto & Vírgula, que pretendia dar uma oportunidade de publicação aos escritores das ilhas de Cabo Verde. A revista, sem uma linha editorial comprometida com política e ideologias, “nós [Germano Almeida, Leão Lopes e Rui Figueiredo] sempre dissemos que a revista é para os amigos, inimigos, criticadores, os críticos e todo o mundo que queira escrever para ela” (Laban, 1992: 625), augurava trazer à luz os escritos da intelectualidade cabo-verdiana, o que, nas palavras de Germano Almeida, se revelou infrutífero: “[A revista] poderá, daqui a uns tempos, afirmar que serviu para desmistificar, de certo modo, aquilo que quase toda a gente pensa: em Cabo Verde, produz-se muito e não há meios de publicação” (Laban, 1992: 621).

Esta revista é reveladora de uma das ideias que têm acompanhado o pensamento de Germano Almeida, levar a literatura cabo-verdiana para um patamar de amadurecimento que se afaste da descrição e que se foque na reflexão: “uma literatura que nos levasse à análise do homem cabo-verdiano – da própria posição do homem cabo-verdiano na sociedade, para mim, sobretudo depois da Independência, até agora não houve nada acerca disso” (Laban, 1992: 631).

O estádio reflexivo da literatura cabo-verdiana seria o ponto de afirmação capital de Cabo Verde enquanto nação insular, o ilhéu cabo-verdiano que se aproxima geograficamente de África mas revela maior cumplicidade com o panorama social, político e cultural europeu: “eu [Germano Almeida] penso que é necessário continuar a ter coragem de nos afirmarmos como cabo-verdianos ligados, politicamente, digamos, a uma raiz africana, também a uma raiz europeia, que deu essas duas culturas ligadas, dando a impressão que era uma coisa nova.” (Laban, 1992: 676).

O ponto de vista defendido por Germano Almeida torna-se central na seguinte afirmação do autor: “Nós [cabo-verdianos e portugueses] temos muitos pontos comuns, obviamente, sobretudo Cabo Verde, que é um país feito pelos portugueses. Mas as ilhas – não só a sua orografia, mas sobretudo a ausência de meios de vida, a falta de chuva, sobretudo – fizeram de nós pessoas diferentes”[1]. Em relação à lusofonia, porque existe um sentir diferente do ilhéu cabo-verdiano e a língua portuguesa aparece como um instrumento de expressão gráfica dos escritores, Germano Almeida considera-se um lusógrafo e não um lusófono: “não gosto muito da expressão lusofonia. Somos escritores de diversos países que usam a língua portuguesa como língua de contacto, como língua de expressão, mas não é uma cultura lusófona”[2].

A geração literária de Germano Almeida preocupa-se com a reflexão de temas que ultrapassem a simples descrição pessoal das diferenças existentes nas ilhas (a seca, a emigração, e a própria situação política pós-independência), no sentido de se pensar acerca da condição do homem cabo-verdiano e a sua condição de ilhéu. Assim, Germano Almeida reflete o culto das ilhas e do valor da insularidade nas gentes do arquipélago cabo-verdiano, assumindo essa condição de questionamento ôntico e de descoberta de um caminho maduro para a literatura cabo-verdiana.

O livro pelo qual se tornou conhecido é O testamento do sr. Napumoceno da Silva Araújo, que foi adaptado ao cinema. A vida de Napumoceno é um conjunto de peripécias que se foca na identidade cabo-verdiana e subtilmente na reflexão da sua matriz insulana. Por entre humor e ironia, Germano Almeida procura em Napumoceno a reflexão sobre a vida de um pobre homem de S. Nicolau que se torna um respeitado comerciante do Mindelo, mas que indaga o leitor sobre a vida das ilhas, a independência e não união com a Guiné, “Proclamavam ser necessário criar-se uma força capaz de se opor àqueles que vinham da Guiné” (Almeida, 1997: 44), a pobreza, a diáspora, “Não deixo porém de pensar ser uma pena que a distante América teime em roubar-nos excelentes esposas e futuras mães” (Almeida, 1997: 63), as ligações a Portugal e à Europa, e a condição de ilhéu, “A verdade, porém, é que preferia fechar-se em casa a redigir o testamento da sua vida porque já não se reconhecia naquela intolerância tão contrária ao modo de ser do ilhéu” (Almeida, 1997: 45). Napumoceno, ao morrer, “pensei que ele estivesse ainda a dormir e só quando abri a janela é que vi que ele dormia o sono dos anjos” (Almeida, 1997: 167), deixou um testamento que, à “150.ª página” (Almeida, 1997: 7), passa a ser lido por Américo Fonseca, pois mais parecia que o falecido “escrevera antes um livro de memórias” (Almeida, 1997: 7).

O autor publicou os seguintes títulos: O testamento do sr. Napumoceno da Silva Araújo (1989), O dia das calças roladas (1992), O meu poeta (1990), A Ilha Fantástica (1994), Os dois irmãos (1995), Estórias de dentro de casa (1996), A morte do meu poeta (1998), A família Trago (1998), Estórias contadas (1998), Dona Pura e os camaradas de Abril (1999), As memórias de um espírito (2001), Cabo Verde – Viagem pela história das ilhas (2003), O mar na Lajinha (2004), Eva (2006), A morte do ouvidor (2010), De Monte Cara vê-se o mundo (2014), O Fiel Defunto (2018), O último mugido (2020) e A confissão e a culpa (2021).

Em 2018, Germano Almeida recebeu o mais distinto prémio literário para autores de língua portuguesa, o Prémio Camões.

Paulo César Vieira Figueira

Bibliografia

Almeida, Germano (1997). O testamento do sr. Napumoceno da Silva Araújo. Lisboa: Caminho.

“Escritor cabo-verdiano Germano Almeida não gosta da expressão ‘lusofonia’”. Acesso digital: https://observador.pt/2021/10/27/escritor-cabo-verdiano-germano-almeida-nao-gosta-da-expressao-lusofonia/. Consultado a 03-01-2022.

Gândara, Paula (2008). Construindo Germano Almeida: a consciência da desconstrução. Lisboa: Vega.

Laban, Michel (1992). Cabo Verde: encontro com escritores. Vol. II. Porto: Fundação Engenheiro António de Almeida.

Laranjeira, Pires (1987). Formação e desenvolvimento das literaturas africanas de língua portuguesa. In Literaturas africanas de língua portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 15-24.

Mariano, Gabriel (1991). Cultura caboverdeana – ensaios. Lisboa: Vega.


[1] In “Escritor cabo-verdiano Germano Almeida não gosta da expressão ‘lusofonia’”. Acesso digital: https://observador.pt/2021/10/27/escritor-cabo-verdiano-germano-almeida-nao-gosta-da-expressao-lusofonia/.

[2] In “Escritor cabo-verdiano Germano Almeida não gosta da expressão ‘lusofonia’”. Acesso digital: https://observador.pt/2021/10/27/escritor-cabo-verdiano-germano-almeida-nao-gosta-da-expressao-lusofonia/.