João dos Reis Gomes foi um militar madeirense que se evidenciou, na sociedade do seu tempo, como um autor com áreas como o jornalismo, o teatro, a história, o romance, a filosofia, a música e o cinema. A sua formação intelectual beberá do período de transição entre o século XIX e início do século XX, marcado pela vaga de acontecimentos que se sucediam no Continente e na Madeira.
Nascido no Funchal, a 5 de janeiro de 1869, onde veio a falecer, a 21 de janeiro de 1950, ficou conhecido como Major João dos Reis Gomes (como se a patente se associasse ao nome próprio) e reconhecido como professor, escritor e ensaísta consagrado, membro de diversas academias, como a Academia de Ciências de Lisboa, e fundador da delegação da Sociedade Histórica da Independência de Portugal, no Funchal. Optou, quase sempre, por uma ação no campo da intelectualidade e não tanto em termos de exposição política. Dirigiu dois periódicos, Heraldo da Madeira e Diário da Madeira, que faziam a apologia de uma visão regionalista, autonómica e conservadora, embora imbuídos de um espírito patriótico.
Personalidade inserida numa geração que pugna por uma melhor autonomia para a Madeira, no início do século XX, a vertente insular, quer pelo recurso a temáticas caras ao folclore madeirense, quer à História, faz de Reis Gomes um dos responsáveis pela edificação de uma identidade madeirense.
A sua ação, ligada a uma perspetiva de insularidade assente na autonomia e no regionalismo, levam-no a debates de assuntos sobre a Madeira com a criação da tertúlia “Cenáculo”, a participação na Comissão de Estudo para as Bases da Autonomia da Madeira e a celebração dos 500 anos da Madeira, entre dezembro de 1922 e janeiro de 1923.
Como homem multifacetado no campo da escrita, interessa-nos, sobretudo, o dramaturgo e o romancista, embora também tenha publicado livros de contos. Cremos que é principalmente em A filha de Tristão das Damas, O anel do imperador, O cavaleiro de Santa Catarina e Guiomar Teixeira, que podemos vislumbrar a ligação da sua escrita à ilha e a preocupação com a identidade madeirense.
Um dos bons exemplos desta ligação insular que norteou a escrita literária de João dos Reis Gomes, é o drama histórico Guiomar Teixeira, adaptado do romance histórico A filha de Tristão das Damas, e que reúne os atributos de uma identificação insular e de um grito identitário. Esta peça de teatro é conhecida por se crer ser a primeira, a nível mundial, a fundir, na sua representação, a arte teatral com a arte cinematográfica, sendo atribuído o mérito ao Major[1].
No drama, tal como no romance histórico, o centro da ação é o auxílio madeirense, prestado pelo donatário Simão da Câmara à tomada de Safim, durante o reinado de D. Manuel I. Numa alegoria subtil com a situação vivida na Madeira aquando da autonomia administrativa de 1901, Reis Gomes aponta o exemplo da conquista da praça marroquina como uma forma de expor que uma melhor autonomia resultaria numa região melhor e, em consequência, num país melhor.
Para percebermos os intentos identitários madeirenses e de protesto contra a situação política do arquipélago, a comissão do Quincentenário escolheu a peça Guiomar Teixeira para representação, o que nos parece uma clara alusão à divulgação do território insular. Os atores principais foram Sofia de Figueiredo, no papel de Guiomar Teixeira, e João dos Reis Gomes, no papel de Cristóvão Colombo.
Pelo seu papel, podemos considerar João dos Reis Gomes como um dos edificadores da memória cultural madeirense, no sentido em que a produção literária do autor “estabelece entre o ontem e o hoje, modelando e atualizando de forma contínua as experiências e as imagens de um passado no presente, como recordação geradora de um horizonte de esperanças e de continuidade” (Antunes, 2019: 204). Mesclado com o conceito de memória cultural, encontramos a “madeirensidade”, no sentido em que “A literatura, por exemplo, contribui para a construção da Madeirensidade, mas ao mesmo tempo é também o devir desta que promove a emergência, a afirmação e o desenvolvimento daquilo que podemos designar como literatura madeirense” (Rodrigues, 2015: 167).
No final do diário sobre a peregrinação madeirense de 1926, no original Através da França, Suíça e Itália – Diário de Viagem, o Major João dos Reis Gomes expressava o sentimento de nostalgia em relação à Madeira, “Estou nostálgico […]. Por momentos, ante a visão da pequenina terra [a Madeira], apaga-se-me da memória a lembrança dessa existência de tão grande e variada beleza que eu acabo, febrilmente, de viver” (Reis Gomes, 2020: 223), o que nos parece uma declaração de pertença geográfica e cultural cara a muitos madeirenses.
Da obra de João dos Reis Gomes destacamos: O Theatro e o Actor (1ª ed., 1905, 2ª ed., 1916), Histórias Simples (1907), A Filha de Tristão das Damas (1ª ed., 1909, 2ª ed., 1946, 3ª ed., 1962), Guiomar Teixeira (1ª ed., 1914)[2], A Música e o Teatro (1919), Forças Psíquicas (1925), O Belo Natural e Artístico (1928), Figuras de Teatro (1928), Através da França, Suíça e Itália – Diário de Viagem (1929), Três Capitais de Espanha: Burgos, Toledo, Sevilha (1931), O Anel do Imperador (1934), Natais (1935), O Vinho da Madeira (1937), Casas Madeirenses (1937), O Cavaleiro de Santa Catarina (1941), De Bom Humor… (1942), A Lenda de Loreley – Contada por um Latino (1948), Através da Alemanha – Notas de Viagem (1949) e Viagens (2020)[3].
Bibliografia
Antunes, Luísa Marinho (2019). A construção da memória cultural por meio da literatura: alguns aspectos. In Pro-Posições Culturais. São Paulo, 189-211.
Figueira, Paulo (2021). João dos Reis Gomes: contributo literário para a divulgação da História da Madeira [tese de doutoramento/texto policopiado]. Funchal: Universidade da Madeira.
Gouveia, Horácio Bento de (1969). O académico e escritor João dos Reis Gomes. In Panorama, nº 29. Lisboa, 6-9.
Marino, Luís (s.d.). Panorama Literário do Arquipélago da Madeira [texto inédito]. Arquivo Regional da Madeira/Arquivo Luís Marino.
Reis Gomes, João dos (2020). Viagens (Ed. Literária Ana Isabel Moniz). Funchal: Imprensa Académica.
Rodrigues, Paulo (2015). Da Madeirensidade: Contributo para uma reflexão necessária. In Nelson Veríssimo e Thierry Proença dos Santos (orgs.). Universidade da Madeira: 25 anos. Funchal: Universidade da Madeira, 165-190.
[1] O drama foi vertido para italiano por Virgilio Biondi, La Figlia del Vice-Ré, e foi representada pela companhia italiana Vitaliani-Duse, em 1914, no Teatro Municipal do Funchal.
[2] Guiomar Teixeira, além da versão italiana, contou com três edições.
[3] De acordo com Luís Marino, em Panorama Literário do Arquipélago da Madeira, p. 67, devemos acrescentar a esta lista No Laboratório, Psychologia e Pathologia Cerebral (1899), escrito por João dos Reis Gomes, sob o pseudónimo J. Règinard.