Antes de se tornar um parque nacional em 2002, a ilha de uma cinquentena de km2 que se encontra na extremidade noroeste do golfo de Asinara (Sardenha), conheceu todas as formas de confinamento que o seu isolamento relativo autorizava, a uns 500 metros do ilhéu de Piana, separado da península de Stintino por ainda cerca de meio quilómetro. Isto começa em 1885, com a criação de uma colónia penal agrícola em Cala d’Oliva, na encosta da aldeia da ilha, e de um lazareto de quarentena um pouco mais ao sul, em Cala Reale. As dificuldades levantadas pelo projeto de lei apresentado perante a câmara dos deputados pelo Presidente do Conselho e ministro do Interior Agostino Depretis: o destino dos pescadores e pastores da ilha e a falta de água, encontram um princípio de solução através da construção de uma cisterna e da expropriação dos habitantes. A mão-de-obra é formada pela população penal trazida por caravanas de 10 a 40 condenados, aos quais foi incumbida a construção do lazareto em 1897 (foi fechado em 1939), e de uma nova prisão que em breve foi edificada em Fornelli no sul da ilha, onde o território foi dividido sob a dupla jurisdição do ministério da Marinha e do Interior.
Entre dezembro de 1915 e março de 1916, com o desembarque de 24.000 prisioneiros de guerra provenientes do Império Austro-Húngaro, a “estação sanitária”, organizada para um máximo de 1.500 pacientes, foi incapaz de fazer face à cólera que se declarou a bordo dos comboios marítimos ao mesmo tempo que no campo de trânsito albanês de Valona. A epidemia mata entre 7.000 e 8.000 prisioneiros repartidos por diversos pontos da ilha, ao sabor dos campos que se organizam à pressa (obrigando a colónia penal a concentrar-se no norte da ilha): em Fornelli, Campu Perdu, Tumbarino. A localização deste último campo serviu para fornecer de madeira a colónia enquanto que nas localidades de Santa Maria, Campu Perdu, Stretti se praticavam o trabalho agrícola e a criação de gado (e acessoriamente a pesca): 230 hectares (em olivais, vinhas, cereais e outras culturas alimentares) cultivados no início do século XX, não apenas pela colónia-prisão de tamanho real inspirada na instaurada no arquipélago toscano na ilha de Pianosa, constituída colónia penal em 1858, depois na ilha de Gorgone em 1871, – mas também graças à chegada de 10.000 outros prisioneiros de guerra após a epidemia de cólera.
Em 1937, a filha mais velha do negus Haïlé Selassié, capturada pelas autoridades coloniais italianas, é internada na Asinara, como o são várias personalidades da Etiópia durante a segunda guerra de ocupação deste país. O confino politico mussoliniano renova portanto com a regelatio ad insulam da antiguidade romana internando os opositores, por medida de policiamento e de segurança, em ilhas que têm todo um passado de lugares de exílio, em particular Ponza e Ventotene no arquipélago das ilhas de Pontinas ao largo do Latium, ou mesmo Ustica, Favignana, Lampedusa, Lipari, Patelleria, Tremiti. Em Asinara, o ponto de viragem nos anos 70, foi o da transferência de alguns dos chefes importantes das Brigadas Vermelhas para a prisão de Fornelli, no edifício, recondicionado para a circunstância, onde a colónia penal agrícola tinha sido no início um local de detenção de uma cinquentena de condenados cujo número decuplicou: a partir de então, (meados dos anos 70), são mais de uma centena em reclusão na prisão de Fornelli, o dobro em casa di lavoro (regime “aberto” durante o dia) a pequena centena restante ao sabor de dez secções (diramazioni, no original, ramificações), entre os quais a Casa Bianche, a mais ao norte (onde estão instalados quem se entregou (consegnati, no original), beneficiando de uma semiliberdade), que se juntam aos “anexos” existentes (entre outros por crimes sexuais, em Tumbarino, tráfico de droga internacional, em Santa Maria).
Na sequência de toda uma série de causas – autoridade controversa do novo diretor da prisão (julgado, depois condenado por corrupção), direito de visita e condições de detenção muito severas, planos de evasão gorados, rebeliões mais ou menos sufocadas, pressão da população local e da opinião pública, um juiz tomado como refém pelas Brigadas Vermelhas ainda em liberdade, em Roma, para obter o fecho do bairro de Fornelli – os ativistas são, em fins de 1980, de novos transferidos; o que não impede a Asinara de continuar a ser a prisão de “alta segurança”, do crime organizado (máfia siciliana e Camorra) até ao seu encerramento em 1997. No início dos anos 80, Cala d’Oliva, que continua a ser prisão “central”, torna-se a prisão “fortificada” de Toto Riina.
Durante mais de cem anos (dos quais perto de quarenta a reclamar a conversão da ilha em parque natural), o que faz a especificidade de Asinara, escolhida de forma quase acidental ao lado de outras sete colónias agrícolas da Sardenha, é não somente a combinação das suas funções sanitária e penitenciária, mas também, paradoxalmente (tendo em conta o seu afastamento), a sua involuntária imersão numa história (guerra mundial e colonização, fascismo, terrorismo e banditismo…) que a expõe a todos os regimes, alternativamente civis e militares, em termos de disciplina (grupos de trabalho e colónia agrícola) e de vigilância e detenção (semiliberdade, reclusão, degredo, quarentena, internamento em campos de “concentração” para prisioneiros de guerra). E esta exposição até mesmo à história explica também a sua metamorfose…
Com efeito, é uma completa reviravolta de paradigma: visitando Asinara num pequeno comboio que serpenteia ao sabor das enseadas (calas, no original), ao turista é solicitado que se mantenha a uma boa distância dos burros que são deixados ali totalmente livres para atravessarem a estrada cortando toda a ilha do sul ao norte. Endémica, a raça destes burros albinos é considerada “vulnerável” razão que faz dela justamente uma “espécie protegida”, participando desta vulnerabilidade: a consanguinidade. Se bem que, não contente pour transformar o burro, animal de vocação doméstica, em novo problema insular carimbado de “natureza” (à custa de uma falsa aproximação de etimologia provável1), passou-se para uma axiologia de “Reserva animal” e de atração turística em que a estação sanitária ocupou o lugar de veterinário e o espaço prisional no éden ambiental.
1 Nenhum dos nomes latinos da ilha (Herculis Insula, Sinuaria, até mesmo Aenaria) permite reconhecer asinus (isto é, burro).
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