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Categoria: Práticas

Lazareto de quarentena e leprosarias nas ilhas

Espaço insular e questão sanitária têm parte ligada. Num local diminutivo, pode-se melhor confinar as populações abrangidas do que se pode identificar mais facilmente os lares infeciosos para não dizer contagiosos. “Cortar às fatias a relação dos corpos a fim de suprimir a doença nos limites impostos: estas duas condições, de corte e cerca, foram cumpridas1 “por uma geografia de fragmentação das ilhas à qual se fez grosso modo corresponder uma dupla estratégia. Seja porque a exclusão bane o doente atingido pela lepra fora de um espaço a purificar, seja porque a inclusão faz-se isolando o doente atingido de peste num espaço a controlar2. Lepra: distanciar para afastar; peste: afastar para internar. Tal é a insularização praticada a partir do continente. Conter em meio natural circunscrito.

Metade dos lazaretos concebidos para se proteger da peste na Europa foram ilhas3. Em 1377, uma primeira quarentena histórica teve lugar no ilhéu de Mrkan (Adriático) antes de se deslocar para não longe no outro ilhéu à frente de Dubrovnik em 1430, depois numa ilha chamada Lokrum. Em 1423, Veneza já tem o seu estabelecimento no ilhéu de Santa Maria di Nazareth, ao qual se junta um lazzaretto nuovo (1468) depois um outro na ilha de Poviglia. Lazaretos sob autoridade veneziana existem na Cefalónia e em Corfu, (num ilhéu perto da cidade). Em Livorno, um controlo sanitário foi instaurado no ilhéu do Fanal em 1582. No porto de Ancona, um pentágono edificado sobre a água dá um aspeto de ilha artificial. Nápoles tem o seu no ilhéu de Coppino, vizinho de Nisida (ilha onde estão apenas situadas instalações de simples “observação”). Sempre em situação de dupla insularidade, o ilhéu Manoel a norte de La Valeta em Malta, ou o ilhéu de quarentena de Minorca, antes da escavação de um canal tendo por efeito transformar a península de San Filipet (Mahón) em ilha onde se ergue um segundo lazareto (o mesmo em Trieste: um canal isola o lazareto da cidade). Até o lazareto de Kostajnica está localizado numa ilha (é verdade que é fluvial) na fronteira entre a Bósnia e a Croácia. Marselha tem duas quarentenas: uma na ilha de Jarre para os navios em “patente bruta” (N.T. – que atesta que partiu de um país infetado), o outro, comum, em Pomègues (arquipélago do Frioul) onde o Grand Saint-Antoine com proveniência da Síria pestífera se prepara para dizimar a cidade em 1720. A grande viragem sanitária na Europa, após as pandemias de peste, foi a irrupção da febre amarela e da cólera, para as quais se construíram novos dispositivos insulares: hospital Caroline nas ilhas Frioul (Ilha de Ratonneau),  Sanguinárias (Ajácio),  de Hyères (Porquerolles e Bagaud), San Antonio (porto siciliano de Trapani), Asinara (Sardenha), Ayios Nikolaos (Cíclades)4, …Um cordão sanitário espalhou-se pelo litoral atlântico: em Saint-Vaast-la Hougue (ilhéu de Tatihou),  no  Havre  (ilhéu do Hoc), em Brest (ilhéu de Trébéron), em Lorient (Ilha de Saint-Michel), em Rochefort e em La Rochelle (ilha de Aix).

Nas colónias, donde procede em parte a nova epidemiologia tropical, um cruzamento faz com que lepra e peste estejam muito perto da febre amarela. Em São Domingos, em 1712, hesita-se em banir uma vintena de famílias da ilha da Tartaruga por causa da lepra, antes que as autoridades mudem de opinião. Em Guadalupe escolhe-se sequestrar os leprosos na Désirade entre 1728 e 1958. Os primeiros documentos relativos aos leprosos guianenses remontam a 1818. São quarenta escravos internados no ilhéu de La Mère, depois transferidos para uma das ilhas do Salut (Royale), e, de lá, transferidos de  novo para um afluente do Mana, o Acarouany. A questão do que fazer com os leprosos coloniais desdobra-se numa outra, logo após a abolição da escravatura: à maneira como se distinguia os doentes escravos e livres (dito de outra maneira Brancos, estando a maior parte isenta de reclusões sanitárias,  e Negros, em princípio internados), os regulamentos distinguem neste momento, duas categorias de leprosos, os da população livre e os do “elemento” penal introduzido pelos forçados da Guiana e da Nova Caledónia. Estes últimos dependem com efeito unicamente da administração penitenciária. Na Guiana, são enviados para a ilha de Saint-Louis do Maroni. Os condenados leprosos da Nova Caledónia são-no para a ilha de Nou, não longe da colónia penal, depois para a ilha de Art (arquipélago de Belep) e para a ilha das Cabras, antes de passarem pela península de Ducos, muito próximo de Nouméa. Os leprosos melanésios do arquipélago das ilhas Lealdade são internados na ilha de Dudun (Ilha de Maré). A diferença, étnica (indígenas / escravos) e jurídica ( forçados a cumprir a pena e libertados), opera-se também socialmente para os indigentes, que se entende colocar numa “leprosaria marítima” (e não “terrestre”), na Cochinchina, e que se acaba por dirigir para uma ilha do Mekong, como na Costa do Marfim, faz-se para a ilha Désirée, numa laguna a quatro horas de Abidjan.

A peste (epidémica) não tem a ver com a mesma insularidade da lepra (endémica). Se é certo que uma é de progressão lenta, incurável e reputada moderadamente contagiosa, também é certo que é ao mesmo tempo fulminante e menos fácil de prevenir, antes dos primeiros sintomas, do que a lepra e os seus estigmas. Quando a peste chega a Nouméa, o espaço urbano é objeto de uma insularização distributiva: no interior do que as autoridades sanitárias chamam uma “grande cerca”, a península é fracionada por isolados para os Europeus; para a mão-de-obra “contratada” de origem asiática, em contrapartida, é reservado um ilhéu de quarentena na baía de Nouméa (Santa-Maria).

Espacialização/especialização que se encontra, à entrada da cidade, no lazareto do ilhéu de Freycinet dividido ele próprio em duas partes recondicionadas: para a observação da doença por um lado e para o seu tratamento por outro. O mesmo acontece na ilhota em Cabrit do arquipélago dos Santos em Guadalupe, ocupada por uma prisão central e que também serve de depósito para os condenados a trabalhos forçados guadalupenses que dois comboios por ano conduzem ao presídio na Guiana5. Isolados sem afastamento, os lazaretos de quarentena 

têm uma política oposta ao esquema de dupla insularidade leprosa. Não se trata de os instalar o mais longe possível, mas, como com o ilhéu de Maskali da costa francesa dos Somalis, se possível o mais próximo dos portos e circuitos comerciais.  Razão pela qual, em 1893, se vai encerrar o lazareto dos Saints em proveito de um outro ainda mais aproximado, no ilhéu de Cosson de Pointe-à-Pitre. Já não se estará lá num campo protegido de molde a reforçar as epidemias por concentração das doenças, mas num local de trânsito, uma via de passagem acelerando a retoma da circulação das pessoas e mercadorias. Substituir-se-á aí a desinfeção dos navios pelo internamento das pessoas em quarentena preferindo a inclusão dos bens num fluxo de livre troca pela inclusão das doenças numa organização de isolamento em todos os casos (lepra ou peste) incompletamente aplicado e mais ou menos controlado.

Éric Fougère

[1] Ver Éric Fougère, La Prison coloniale en Guadeloupe, Matoury (Guyane), Ibis Rouge, 2010.

1 Éric Fougère, Les Îles malades, Classiques Garnier, 2018, p.8.

2 Ver M. Foucault, Surveiller et punir, Paris, Galimard, 1975.

3 Ver Daniel Panzac, Quarantaines et lazarets, Aix-en-Provence, Édisud, 1986.

4 Ver John Chircop e Francisco Javier Martínez (ed.), Mediterranean Quarantines, 1750-1914, Manchester University Press, 2018

A prisão colonial, entre o ilhéu de Cabrit des Saintes em Guadalupe e colónia penitenciária na Guiana

A “prisão colonial” 1 é não somente o local de detenção que se encontra nas colónias, mas também uma organização submetida à especificidade que se reserva à sua administração. Do mesmo modo que existe um código penal colonial (revogado a 8 de janeiro de 1899), existe um regime de penas interno nas colónias, que se distinguirá daquele que diz respeito aos condenados a trabalhos forçados na metrópole que são enviados para cumprirem a sua pena nas colónias. “Prisão colonial é, portanto, um qualificativo ambivalente. De acordo com o que se designará a origem, (em relação aos factos criminosos e sentenças de tribunais atingindo a população propriamente colonial) ou o destino (colónia da Guiana onde se despacham – “coloniais” e “nacionais” confundidos – todos os condenados da lei sobre o Degredo de 30 de maio de 1854), ter-se-á duas aceções diferentes. Trata-se de prisão colonial no sentido em que é uma instituição que se fiscaliza da metrópole para a colónia, via Ministério do Marinha e das Colónias. Trata-se também de prisão colonial no sentido em que a sua identidade “crioula” está marcada – mas conhece tensões contraditórias entre interesses local e nacional. A esta ambiguidade acrescenta-se um desdobramento, de colónias “simples” a colónia “penitenciária”.

Logo após a abolição da escravatura, um caso típico é o da Guadalupe, em plena mutação social com a chegada da mão-de-obra de “contratados” de origem indiana acusados de fogo posto, e de vagabundos, ao lado de africanos libertos que dão que falar deles por roubos, violências e rebeliões. É na continuidade destes casos criminais recuperados de forma repetida (que não correspondem forçosamente à realidade que lhes quer dar o eco da imprensa e da opinião pública) que é reestruturado o serviço das prisões da colónia por despacho de 26 de dezembro de 18682. A correcionalização das condenações pronunciadas, tal como as dificuldades para instaurar o trabalho em meio prisional, parecem,  entre outros, adotar a mesma evolução do que se passa no Hexágono. Não é apenas nos dados estatísticos comparados que não mostram uma certa analogia com o que é a situação judiciária e penitenciária na metrópole. É no tipo de população visada, na reação que suscita e no dispositivo penal e carcerário imaginado que se deve antes procurar a diferença.  

A julgar apenas pela diferença entre rações “crioulas” e “europeias”, a balanço é desigual3,  – ou sê-lo-ia se houvesse pessoas com direito a ração “europeias”. Porque não se conta com

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qualquer Branco nas prisões guadalupenses, tal como testemunha um relatório estatístico da prisão de Les Saints em 1884, onde a totalidade dos prisioneiros são crioulos (num total de 58), ou de origem indiana (64)4. Esta colónia penal constituída por “prisão forçada e de correção” desde a sua criação em 1852, até ao seu encerramento em 1905, está construída sobre o ilhéu em Cabrit para aí concentrar três categorias de condenados: a mais de um ano de prisão, a trabalhos forçados, à reclusão. A rejeição da sua população penal explica em parte a escolha de afastamento que está fixado numa ilhota, mas também o de permitir à colónia (quando esta renunciar a perpetuar  o seu “presídio” efémero instalado num pontão) “deportar” os seus  reclusos “de raça africana e asiática para o presídio na Guiana, em lugar de os deixar a espiar  a sua pena no local da sua condenação pelos tribunais, como é o caso no Hexágono: agravamento da pena tendo como efeito introduzir na Guiana, ao lado da categoria “forçados”, a categoria  de recluso exclusivamente racial e colonial.

Mede-se a iniquidade da reclusão guianense5 no exame do que fazer no local aos condenados guadalupenses (mas também da Martinica e da Reunião) que fazem partir levas, uma vez por ano em média, da prisão-depósito do ilhéu de Cabrit. Apesar da necessidade legalmente reconhecida, num primeiro tempo, de estabelecer uma ressalva jurídico entre os deportados forçados de 1.ª e os presidiários coloniais, de 2ª categoria, a administração penitenciária chega a esse propósito, de facto, a confundi-los, ao nível dos trabalhos de arroteamento (reputados “os mais penosos da colonização”) como ao das rações alimentares e dos castigos. Se o chapéu de palha que enfarpela os forçados se vê substituído por um feltro cinzento na cabeça dos presidiários, e se são cosidas as iniciais RC (Reclusos Coloniais) na manga esquerda da túnica destes últimos, as duas categorias não estão menos agrupadas, segundo os critérios por evidência étnica e não penais, nos campos mais mortíferos, em particular Sainte-Marie, “para a escavação de certos fossos que teria sido perigoso mandar executar por brancos”6.

Éric Fougère

1 Ver Éric Fougère, La Prison coloniale en Guadeloupe (îlet à Cabrit, 1852-1905), Matoury (Guiana), Ibis Rouge Éditions, 2010.

2 Sucede ao de 1852, sobre a organização das prisões coloniais, e de 1858, sobre o regime interno das prisões.

3 Nos termos do despacho de 1868, as rações dividem-se assim: pão, 660 g, ou farinha de mandioca 60 cl, bacalhau 125 g, legumes 100 g (prisioneiros crioulos); pão 625 g, carne fresca condimentada com 12 g de gordura, 250 g ou carne salgada 200 g, legumes temperados com 12 g de manteiga ou 120g (para prisioneiros de origem europeia ou que justifiquem “hábitos europeus”).

4 Uma média dos anos de 1886 a 1891, indica uma repartição dita “etnográfica”  de 62% de condenados crioulos (negros ou mulatos), 30,5% de origem asiática (Indianos), 0,6% de origem africana (contratados), 0,4% de origem europeia ou metropolitana e 3,3% de diversas proveniências (em particular das colónias inglesas). Ver Armand Corre, Le crime en pays créoles, esquisse d’ethnographie criminelle », Paris, Stock, 1889 e do mesmo autor, L’Ethnographie criminelle d’après les observations et les statistiques recueillies dans les colonies françaises, Paris, C. Reinwald & Cie, 1984.

5 A diferenciar da reclusão que se aplica aos forçados por medida disciplinar na ilha de Saint-Joseph, uma das ilhas do Salut (Guiana).

6 Carta de Bonard, Governador da Guiana, ao Ministro das Colónias (18 de novembro de 1854). Arquivos nacionais do Ultramar, Série Colónias, H45  

Os “arruaceiros”da Désirade (1763-1767)

A Désirade é uma ilha  de uma vintena de km2 situada não longe da Grande-Terra em Guadalupe, à qual está  administrativamente ligada. O que se sabe disso de fonte oficial começa com o desterro dos leprosos que aí são sequestrados a partir de 1728[1]. Uma micro-sociedade crioula[2] (“habitantes algodoeiros”, “pequenos-brancos”, mulatos, escravos) aí vive desde há três décadas quando um outro acontecimento volta a cruzar a sua história à margem das grandes correntes de trocas (conta então com uma cinquentena de famílias[3]) : nos termos de um despacho de julho de 1763, Luís XV e o seu ministro Choiseul entendem livrar-se dos “jovens de mau comportamento”. Um objetivo é esvaziar pela força as casas de correção onde estão normalmente detidos estes “sujeitos perigosos” de família.

Há toda uma tradição. Sob a Regência, enviavam-se “contratados” para colonizar as Antilhas e a Luisiana (ilha Dauphine) permitindo que alguns de entre eles escapem às galeras. Experiência iniciada, mais longe no tempo, por cartas-patente autorizando o recurso a criminosos arrancados da prisão para irem povoar o Canadá (1540-41) depois as ilhas Douradas (Bagaud, Port-Cros, Levante) decretadas terras de asilo (1550). Lembra-se também os projetos de fundação de uma colónia francesa no Brasil, na atual ilha de Villegagnon, na baía de Guanabara (1555-60) recrutando parte dos candidatos no elemento penal (e nomeadamente vagabundos e falsos-salineiros), depois na ilha de Sable (ao largo da Nova-Escócia) com uns sessenta condenados dos quais apenas sobreviveu uma dúzia (1598-1603)…

Se o texto de 1763 diz que “o rei permite fazer passar pela ilha da Désirade os jovens […] cujo comportamento irregular teria obrigado os pais a pedirem que aqueles fossem exportados  para as colónias”, é porque sendo diferente do que se praticava até então, estes não são julgados, mas visados por cartas de prego (Nota do tradutor: lettres de cachet, no original) com base na simples acusação de um particular querendo obter uma ordem de detenção que fica à discrição do poder após inquérito. Não são cadastrados, mas condenados pela polícia. Na Désirade, em consequência, não se trata de colonizar, mas de corrigir. Daí a orientação disciplinar : serão distinguidos os “arruaceiros” por classes à medida que se “reconhecerá neles mais ou menos emenda” com o envio de “certificados de vida”. Última diferença, explicando desta vez a organização militar : são “contidos” por uma companhia de infantaria encarregada de exercer a vigilância às ordens de um comandante que, se for o caso, os mandará “meter na prisão com ferros nos pés e mãos”.

A conceção do estabelecimento, prisão na prisão, dá e este o aspeto de um campo, não somente pela sua construção (uma prisão propriamente dita em alvenaria, seis choças onde os “arruaceiros” são fechados todas as noites num bairro da ilha chamado Les Galets, muros vegetais servindo de muralha e postos de sentinelas) mas também pelo seu funcionamento : três sargentos inspetores efetuam todas as noites uma chamada, e fazem-no também três majores, “a horas não fixadas” – o que não impede a evasão de quatro detidos supostamente afogados nem a de cinco outros, dos quais dois são “trazidos de volta”. Mas Villejoin, nomeado governador e comandante do campo no local, é o primeiro a denunciar as condições do que ele chama uma “crassa ociosidade” : “A ração não é suficiente na maior parte. […] vários estão três quartos do tempo de pés nus e sem camisa ; muito poucos recebem notícias das suas famílias e ainda menos ajudas.” Obrigadas a “submeterem-se” (pagar a pensão de cativeiro), famílias há que se esquecem de liquidar a mesma. Mas a igualdade de tratamento teórica está longe de ter sido seguida. Os melhor classificados, muitas vezes fidalgos, beneficiaram de favores : comem à mesa do governador ou dos oficias da guarnição, beneficiam por parte deles de empréstimos em dinheiro.

A bordo de corvetas ou paquetes, os “arruaceiros” são embarcados às dúzias com partida em Rochefort, com destino à Martinica e a Basse-Terre em Guadalupe. Em cada etapa (é preciso contar também as que os faz vir de todos os cantos do reino e das prisões de São-Lázaro ou de Bicêtre em Paris), os passageiros são guardados como prisoneiros (média de seis meses na prisão de Rochefort, e até três anos para alguns). São da província (somente dois são parisienses, dois outros são residentes das colónias), denunciados principalmente por “violências” e dívidas (em particular de jogo). A média de idades é de cerca de 25 anos (o mais jovem tem 16 anos, os mais velhos são quarentões). Alguns são da pequena ou média nobreza de vestimenta ou de espada,  outros ainda pertencem a famílias de artesãos e de pequenos comerciantes, outros, enfim, fazem parte da burguesia. Quando o estabelecimento fecha, em 1767, são cerca de quarenta, em vias de partir de Rochefort, por não terem sido deportados (mortos, evadidos, repetentes, “revogados” a pedido das famílias… ou por causa de interrupção dos envios) num total de 139 processos classificados sem continuação ou recusados[4].

Desde o ano de 1765, quando existia há menos de um mês, já não se acreditava no estabelecimento. A correspondência trocada pelas autoridades coloniais e a metrópole, entre os intendentes de províncias e o ministério do Interior e o porto de Rochefort e o Gabinete das Colónias, coloca o acento em pelo menos três pontos: despesa excessiva (tendo em consideração um número também limitado de “residentes”) ; absurdo de um sistema de “recuperação”, fazendo dizer a Villejoin, tornado seu detrator, que os ”arruaceiros” são confundidos com alguns que são referenciados [marcados] como pessoas sem esperança, que têm demasiados vícios de coração […]. Não é de tais pessoas que se poderão extrair sentimentos e, esmagado pela miséria, encontrar-se-á pouquíssimos recursos em casa para voltar ao mesmo » ; indignidade de pais “sobre quem  recai a infelicidade e deixa rasto a culpabilidade dos seus progenitores[5] “ em razão do desinteresse manifestado por eles pela sorte destes. Nos 53 que estão de regresso a Rochefort em pleno inverno (e dos quais um morre durante a travessia), 12 voltam aí a ser prisoneiros até que os seus pais os retirem de lá. Apenas 4 de entre eles são postos de novo em liberdade na primavera, sem resposta das famílias à correspondência em que lhes era pedido que os reclamassem.

Éric Fougère

[1] Ver Éric Fougère, Les Îles malades, Paris, Classiques Garnier, 2018.

[2] Com a diferença de que a monocultura aí é a d algodão, muito menos remunerada do que a cana-de-açúcar.

[3] Estimativa difícil de fazer com exatidão antes dos primeiros recenseamentos.

[4] Ver Bernadette e Philippe Rossignol, « Les “mauvais sujets” de la Désirade », Bulletin de la société d’histoire de la Guadeloupe n° 153 (maio-agosto 2009), p. 92-97.

[5] Éric Fougère, Des indésirables à la Désirade, Matoury, Ibis Rouge, 2008, p. 104.

A deportação política insular em França

Quando Soljenitsin escreve o Arquipélago do Gulag, diz-se que este título é genial, antes de nos interrogarmos porquê. O Gulag dá os seus primeiros passos no arquipélago dos Solovki, porque a colónia penal czarista tinha feito da ilha de Sacalina um lugar de eleição, mas a deportação russa é naturalmente continental, nos antípodas da deportação britânica na Austrália, que não somente associa desde o início todo um imaginário à insularidade, mas que se implanta igualmente na ilha de Norfolk e na Tasmânia, numa lógica de sobreinsularização, cujo equivalente seria o sobre-afastamento dos campos de “reeducação pelo trabalho” na Sibéria. É justamente da Sibéria, bloco arquicontinental, e mais precisamente da Kolimá, que nos chega a explicação do aparente paradoxo de uma representação de campos soviéticos em arquipélago. Nos seus Contos da Kolymá, Varlam Chalamov (“inimigo do povo”, tendo passado dezassete anos nos campos), quase nunca emprega a palavra “continente” para evocar as terras “livres”:

Em Kolimá, as províncias do centro são sempre chamadas de “continente” (…). A ligação por mar, a linha marítima Vladivostok-Magadan, o desembarque sobre rochedos despidos, tudo isso se assemelhava muito aos quadros do passado, de Sacalina. É assim que se considera Vladivostok como uma cidade do continente, se bem que a Kolimá nunca tenha sido qualificada como ilha1.

Portanto os campos apenas seriam um arquipélago a priori, na medida em que a sua geografia vivida, talvez mesmo fantasiada (que se distinguirá da geografia “real”) é de um continente negativo em espelho, ou antes por defeito, concebido para designar por analogia a privação (nomeadamente de liberdade). Esta forma de utilizar o espaço para fins de representação penal ou carcerária, é tudo o que está em causa das deportações francesas ultramarinas.

Falou-se disso no Código Penal de 1810, onde a deportação deve ser feita “fora do território continental (artigo 17). Na ausência do local nomeadamente designado, a deportação continua teórica, tal como se aperceberá no precedente efémero de um projeto de deportação de mendigos reincidentes em Madagáscar, elaborado por um primeiro Código Penal em 1793. Como se a palavra “continental” (explica-se em parte pelo facto de que a França napoleónica ser então um império europeu2) desenhasse em traços gerais a imagem de ilhas às quais se deviam destinar os deportados, virando-se os projetos de deportação seguintes, com bastante lógica, para a ilha de Bourbon (A Reunião,  circo de Salazie), depois  para  Mayotte  (ilhas  de Pamandzi  e  de Dzaoudzi).  Sem  resultado,  a

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deportação continua a ser aplicada no território nacional em cidadela (no Monte-São Michel, em Doullens e mais tarde ainda em Belle-Île).

Historicamente, a França tem toda uma tradição de deportação nas “ilhas”: na Désirade, onde “arruaceiros” denunciados por cartas de prego (NT.-lettres de cachets, no original) são objeto do despacho de 1763 que os retém prisioneiros aí, num campo com paliçada até 17673; nas Seychelles (e mais tarde nas Comores), na sequência de um senatus-consulto de 1801, que regula a sorte dos acusados do atentado da rue de Saint-Nicaise4, na Córsega e na ilha de Caprera (padres hostis a Napoleão), na ilha de Elba (insurretos de São Domingos e de Guadalupe5), por um vaivém da metrópole e das colónias, cuja história da escravatura tem o segredo…

Mas qualquer oposição doutrinária à deportação acrescenta-se à penúria das ilhas em matéria das escolhas de um local. Barbé-Marbois (ele-próprio antigo deportado de Fructidor) e Tocqueville, (autor de Escritos sobre o sistema penitenciário) colocam-se na situação de adversários da deportação, o primeiro porque a mesma é contraditória com a ideia segundo a qual uma pena deve estar próxima do local do crime6,  e  o segundo porque é partidário de uma reforma penitenciária em que o modelo é o encarceramento celular e não a deportação. A viragem resulta de um duplo acontecimento político: insurreições de junho de 1848 e golpe de Estado de Luís-Napoleão Bonaparte.

O que faz reagir de forma urgente é não apenas o número, inédito desde a Revolução, dos que devem ser julgados, mas também a supressão da pena de morte (artigo 5 da Constituição de 1848) para crime político. Após a lei de 24 de janeiro de 1850, que os deporta para o campo-prisional de Lambessa (Argélia), depois na Guiana (ilhéu La Mère e Ilha do Diabo), a de 8 de junho do mesmo ano escolhe as ilhas Marquesas instaurando dois graus de deportação: “simples” (já incluída no Código Penal), agravada (dita “em recinto fortificado”).

A novidade (prefigurada pelos projetos de deportação para a ilha de Bourbon, depois Mayotte), é a introdução de uma detenção na deportação, de acordo com o conceito de “recinto fortificado”, derivado do de “cidadela”. Assim, não contente por correlacionar o local da pena de modo a conferir todo o afastamento possível ao exílio, o dispositivo associa o encarceramento. O que leva Vítor Hugo a dizer, aquando dos debates legislativos (abril de 1850): “Combina-se o clima, o exílio e a prisão: o clima dá a sua malignidade, o exílio o seu desânimo, a prisão o seu desespero; em vez de um carrasco, temos três. A pena de morte foi substituída? (…)  digam connosco: a pena de morte foi restabelecida.”

É perante um número ainda maior de condenados, resultante dos acontecimentos da Comuna de 1870, que bastará, nos termos da lei de 23 de março de 1872, substituir a ilha dos Pinheiros em Nuku Hiva (deportação simples) e a península de Ducos no vale de Vaitahu (deportação dita em recinto fortificado), para transferir, tal como na Nova Caledónia, o princípio de uma insularidade penal (espaço abstrato caraterizado pelos confins) duplicado por uma insularidade carcerária enquanto local concreto de confinamento7.

Éric Fougère

[1] V. Chalamov, Récits de la Kolyma, Lagrasse, Éditions Verdier, 2003, p. 900.

2 Mas o desterro previsto pelo Código Penal (artigo 8.º) é cumprido “fora do território do império” (artigo 32.º).

3 Ver Éric Fougère, Des Indésirables à la Désirade, Matoury (Guiana), Ibis Rouge Éditions, 2008 e Bernardette e Philippe Rossignol, « Les mauvais sujets de la Désirade », Bulletin de la Société d’histoire de la Guadeloupe nº 153 (maio-agosto 2009)

4 Ver Jean Destrem, Les Déportations du Consulat de l’Empire, Paris, Jeanmaire, 1885

5 Ver Yves Benot, La Démence coloniale sous Napoléon, Paris, La Découverte, 1991.

6 « (…) afastar para distâncias imensas, é fazer perder de vista a lembrança do crime, enquanto se perde de vista o criminoso”. François de Barbé-Marbois, Observations sur les votes de quarante e un conseils généraux de départements, concernant la déportation des forçats libérés, Paris, Imprimerie Royale, 1828, p.61

7 Ver Eric Fougère, Île-prison, bagne et déportation, Paris, L’Harmattan, 2022

Nas origens do degredo e da deportação modernos: o exílio insular na Antiguidade romana

O concurso histórico aportado pelas ilhas às prisões remonta à Antiguidade romana: Os Romanos distinguiam relegatio ad insulam et deportatio ad insulam(1). Para além do conteúdo propriamente jurídico (a deportatio, que fazia perder ao condenado os seus direitos cívicos e a propriedade dos bens do seu património, era uma pena em teoria perpétua e decretada pelo imperador, diferentemente da relagatio, que o era por um governador e não apresentava o mesmo rigor, vêem-se articular duas noções que as legislações retomarão quando se tratar de direito penal e das ilhas; mobilidade no afastamento (relegatio ad), imobilidade no encerramento (deportatio in). A esse respeito, observa-se uma graduação das penas: degredo temporário ou perpétuo (fora de uma cidade ou de uma província), degredo numa ilha, deportação numa ilha, pena de morte (2).Existem também três tipos de exílio: interdição de locais específicos (em particular de Roma), exclusão de qualquer outro espaço diferente do lugar especialmente designado, confinamento numa ilha (não se precisando qual antes da sentença).

Podia-se degredar, ou mesmo deportar, não importa para onde, contanto que seja longe, como o mostra o exemplo de Ovídio em Pont-Euxin (Mar Negro). A pena insular não é menos praticada de facto, também ela marcada pela distância, com a deportação, para o arquipélago de Kerkennah (Tunísia), de Sepronius Gracchus, amante de Júlia, filha de Augusto igualmente degredada pelo seu pai para Pandataria (Ventotene), no arquipélago de Pontinas (onde a sua mãe foi ao seu encontro), antes de morrer em Régio di Calábria cinco anos mais tarde, em 14 após Jesus Cristo, aproximadamente. Tibério mandou exilar a filha de Júlia, tal como outras mulheres da família imperial; Otávia, esposa de Nero, Flávia Domitila, esposa de um rival de Domiciano,  Orestila, esposa de Calígula, Júlia Livila, Agripina, a Jovem (filhas de Germânico), exiladas na ilha de Ponza, Júlia Vipsânia, no arquipélago das Tremiti. Todas (exceto Flávia Domitila), por casos de costumes (adultério, aborto, deboche, sacrilégio), mas sem dúvida também pelas mesmas razões, políticas, explicando o envio, para Capri, de Lucília, irmã de Cómodo, e de Crispina, sua esposa, acusadas de conjura contra o imperador, ou de Séneca na Córsega por motivo de adultério com Júlia Livila, mas vítima também de intrigas no círculo de Cláudio(3).  Em  417,  em Lipari  

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(1) Ver Vincent Jolivet, “O exílio nas ilhas na Antiguidade romana”, in Brigitte Marin dir., “Les Petites Îles de Méditérranée occidentale”, Marselha, Edições Gaussen, 2021, p. 172-175.

(2) Ver Yann Rivière, “L’interdictio acqua et igni e a deportatio sob o Alto-Império romano in Philippe Blaudeau dir., Exil et relégation, les tribulations du sage et du saint durant l’Antiquité romaine et chrétienne (Ier – VIe après J- C), Paris, De Boccard, 2008, e, do mesmo autor, «La relégation et le retour des relégués dans l’Empire romain (Ier -IIIe) in Claudia Moatti, Wolfgang Kaiser, Christophe Pébarthe, dir., Le monde de l’itinérance en Mediterrannée de la Antiquités à l’Époque Moderne, Bordeaux-Pessac, Ausonius Éditions, 2009, p. 535-570.

(3) Ver Roselyne Immongault Nomewa, « Les éxilés romaines et l’espace répulsif dans l’empire romain : l’apport des sources littéraires latines », CHA, 2014, online em https://www.academia.edu

(grupo das Eólias onde a esposa de Caracala Plautila, tinha estado exilada e foi depois assassinada) foi exilado o primeiro imperador romano do Ocidente, acusado de usurpação, Prisco Átalo. O último imperador, na pessoa de Rómulo Augusto, foi enviado por Odoacro para Nisida, frente a Nápoles.

Por Tácito (Anais), e por Suetónio (Vida dos doze Césares), entre outros, sabe-se que uso Tibério fez das Espórades, (ilha de Cínaros) e sobretudo das Cíclades enquanto lugar de exílio: em Serifos (para onde foram expedidos Cássio Severo, opositor político, e Vistília, matrona acusada de se prostituir), Citnos (para onde foram degredados Júnio Silano, procônsul acusado de malversação), Lesbos (para Júnio Gálio, porque tinha proposto uma mudança de etiqueta que não respeitava a precedência), Amorgos (para onde foi deportado o procônsul Víbio Sereno), Andros (Flaco, prefeito do Egito), mas também Gyaros e Donoussa, que pareciam ter sido reservadas para os desterros mais severos(4) e cuja historiografia não reteve grande coisa devido a três fatores em que o primeiro está ligado à estratégia do esquecimento que preside ao desterro (quando os deportados não são suprimidos de uma maneira ou de outra – assassinato, miséria… – no fim do seu exílio insular). Uma outra explicação advém do facto de a dita estratégia, salvo exceção (nomeadamente a, em 19 D.C., de qualquer coisa como quatro mil libertos deportados para a Sardenha por causa das suas “superstições egípcias e judaicas” e que foram encarregues de lá reprimir o banditismo) abrangeu sobretudo pessoas isoladas de quem os historiadores só falaram (terceira explicação) quando estas pessoas tinham um título qualquer de notoriedade.

Se a sorte de cada um dos condenados romanos tomados separadamente não tem nada, para eles, de anedótico, está-se apesar de tudo perante a constatação de uma disparidade de experiências insulares que não se podem reduzir a qualquer ensaio de globalização. O que há de comum, por exemplo, entre a vida de João o Evangelista em Patmos e a do degredo de Agripa Póstumo, neto de Augusto, na ilha de Pianosa? O que há de comum entre ilhas, na maioria muito pequenas, onde era suposto tudo faltar (Cínaro, Serifo, Gyaros…) e outras onde os romanos ricos tinham construído casas de vilegiatura (em Capri, Pandatera, Nisida…)?  No  entanto fica esta última constatação: os romanos parecem ter inventado (mesmo se se pudesse encontrar esboços disso na época helénica) o espaço-ideia das ilhas-prisão, cuja utilização, ainda empírica, é ao mesmo tempo já sistemática.

Éric Fougère

(4) Ver Étienne Wolf, «Ambivalencedes îles dans la culture romaine : l’exemple de la vie de Tibère », Bulletin de l’Association Guillaume Budé, 2008, 1, p. 139-145.

(5) Ver Patrice Brun, Les Archipels Egeus na Antiguidade grega (V-II século antes da nossa era) Annales littéraires de l’Université de Besançon, Institut de Science et techniques de l’Antiquité, Centre de Recherches de l’Antiquité, Centre recherches d’ Histoire  ancienne, vol. 157 (1996), p. 23.

A ilha da Asinara: um concentrado de insularidade sanitária e penitenciária na Sardenha

Antes de se tornar um parque nacional em 2002, a ilha de uma cinquentena de km2 que se encontra na extremidade noroeste do golfo de Asinara (Sardenha), conheceu todas as formas de confinamento que o seu isolamento relativo autorizava, a uns 500 metros do ilhéu de Piana, separado da península de Stintino por ainda cerca de meio quilómetro. Isto começa em 1885, com a criação de uma colónia penal agrícola em Cala d’Oliva, na encosta da aldeia da ilha, e de um lazareto de quarentena um pouco mais ao sul, em Cala Reale. As dificuldades levantadas pelo projeto de lei apresentado perante a câmara dos deputados pelo Presidente do Conselho e ministro do Interior Agostino Depretis: o destino dos pescadores e pastores da ilha e a falta de água, encontram um princípio de solução através da construção de uma cisterna e da expropriação dos habitantes. A mão-de-obra é formada pela população penal trazida por caravanas de 10 a 40 condenados, aos quais foi incumbida a construção do lazareto em 1897 (foi fechado em 1939), e de uma nova prisão que em breve foi edificada em Fornelli no sul da ilha, onde o território foi dividido sob a dupla jurisdição do ministério da Marinha e do Interior.

Entre dezembro de 1915 e março de 1916, com o desembarque de 24.000 prisioneiros de guerra provenientes do Império Austro-Húngaro, a “estação sanitária”, organizada para um máximo de 1.500 pacientes, foi incapaz de fazer face à cólera que se declarou a bordo dos comboios marítimos ao mesmo tempo que no campo de trânsito albanês de Valona. A epidemia mata entre 7.000 e 8.000 prisioneiros repartidos por diversos pontos da ilha, ao sabor dos campos que se organizam à pressa (obrigando a colónia penal a concentrar-se no norte da ilha): em Fornelli, Campu Perdu, Tumbarino. A localização deste último campo serviu para fornecer de madeira a colónia enquanto que nas localidades de Santa Maria, Campu Perdu, Stretti se praticavam o trabalho agrícola e a criação de gado (e acessoriamente a pesca): 230 hectares (em olivais, vinhas, cereais e outras culturas alimentares) cultivados no início do século XX, não apenas pela colónia-prisão de tamanho real inspirada na instaurada no arquipélago toscano na ilha de Pianosa, constituída colónia penal em 1858, depois na ilha de Gorgone em 1871, – mas também graças à chegada de 10.000 outros prisioneiros de guerra após a epidemia de cólera.

Em 1937, a filha mais velha do negus Haïlé Selassié, capturada pelas autoridades coloniais italianas, é internada na Asinara, como o são várias personalidades da Etiópia durante a segunda guerra de ocupação deste país. O confino politico mussoliniano renova portanto com a regelatio ad insulam da antiguidade romana internando os opositores, por medida de policiamento e de segurança, em ilhas que têm todo um passado de lugares de exílio, em particular Ponza e Ventotene no arquipélago das ilhas de Pontinas ao largo do Latium, ou mesmo Ustica, Favignana, Lampedusa, Lipari, Patelleria, Tremiti. Em Asinara, o ponto de viragem nos anos 70, foi o da transferência de alguns dos chefes importantes das Brigadas Vermelhas  para a prisão de Fornelli, no edifício, recondicionado para a circunstância, onde a colónia penal agrícola tinha sido no início um local de detenção de uma cinquentena de condenados cujo número decuplicou: a partir de então, (meados dos anos 70),  são mais de uma centena em reclusão na prisão de Fornelli, o dobro em casa di lavoro (regime “aberto” durante o dia) a pequena centena restante ao sabor de dez secções (diramazioni, no original, ramificações), entre os quais a Casa Bianche, a mais ao norte (onde estão instalados quem se entregou (consegnati, no original), beneficiando de uma semiliberdade), que se juntam aos “anexos” existentes (entre outros por crimes sexuais, em Tumbarino, tráfico de droga internacional, em Santa Maria).

Na sequência de toda uma série de causas – autoridade controversa do novo diretor da prisão (julgado, depois condenado por corrupção), direito de visita e condições de detenção muito severas, planos de evasão gorados, rebeliões mais ou menos sufocadas, pressão da população local e da opinião pública, um juiz tomado como refém pelas Brigadas Vermelhas ainda em liberdade, em Roma, para obter o fecho do bairro de Fornelli – os ativistas são, em fins de 1980, de novos transferidos; o que não impede a Asinara de continuar a ser a prisão de “alta segurança”, do crime organizado (máfia siciliana e Camorra) até ao seu encerramento em 1997. No início dos anos 80, Cala d’Oliva, que continua a ser prisão “central”, torna-se a prisão “fortificada” de Toto Riina.

Durante mais de cem anos (dos quais perto de quarenta a reclamar a conversão da ilha em parque natural), o que faz a especificidade de Asinara, escolhida de forma quase acidental ao lado de outras sete colónias agrícolas da Sardenha, é não somente a combinação das suas funções sanitária e penitenciária, mas também, paradoxalmente (tendo em conta o seu afastamento), a sua involuntária imersão numa história (guerra mundial e colonização, fascismo, terrorismo e banditismo…) que a expõe a todos os regimes, alternativamente civis e militares, em termos de disciplina (grupos de trabalho e colónia agrícola) e de vigilância e detenção (semiliberdade, reclusão, degredo, quarentena, internamento em campos de  “concentração” para prisioneiros de guerra). E esta exposição até mesmo à história explica também a sua metamorfose…

Com efeito, é uma completa reviravolta de paradigma: visitando Asinara num pequeno comboio que serpenteia ao sabor das enseadas (calas, no original), ao turista é solicitado que se mantenha a uma boa distância dos burros que são deixados ali totalmente livres para atravessarem a estrada cortando toda a ilha do sul ao norte. Endémica, a raça destes burros albinos é considerada “vulnerável” razão que faz dela justamente uma “espécie protegida”, participando desta vulnerabilidade: a consanguinidade. Se bem que, não contente pour transformar o burro, animal de vocação doméstica, em novo problema insular carimbado de “natureza” (à custa de uma falsa aproximação de etimologia provável1), passou-se para uma axiologia de “Reserva animal” e de atração turística em que a estação sanitária ocupou o lugar de veterinário e o espaço prisional no éden ambiental.

1 Nenhum dos nomes latinos da ilha (Herculis Insula, Sinuaria, até mesmo Aenaria) permite reconhecer asinus (isto é, burro).

Éric Fougère

COSSU A., MONTBALLIU X., TORRE A. (1994) – L’Isola della Asinara , Carlo Delfino editor, Sassari.

DODERO G.  (1999), Storia della medicina e della sanità púbblica in Sardegna, Aipsa edizioni, Cgaliari.

GUTIERREZ M., MATTONE A., VAISECCHI F. (1998) – L’isola della Asinara; o ambiente, a história, o parque, Poliedro, Nuoro.

GORGOLINI L. (2011) I dannati dell’Asinara, a odisseia dos prisioneiros austro-húngaros na Primeira Guerra Mundial, Utet Editor, Milão.

Vulnerabilidade e Resiliência da Ilha

A vulnerabilidade e a resiliência são conceitos nebulosos e contestados. Os Estudos Insulares têm contribuído bastante para os compreender, ordenar as diferenças e propor caminhos a seguir. Dois pontos-chave são: que (i) a vulnerabilidade e a resiliência não são opostas, e que (ii) são processos, não estados.

A vulnerabilidade e a resiliência são construções sociais. Muitas línguas não têm traduções diretas para as palavras e muitas culturas não têm os conceitos, especialmente tal como definidos e debatidos no meio académico. Como tal, ambos os conceitos devem ser explicados em pormenor para serem comunicados e aplicados. Os estudos insulares contribuem significativamente ao observar que ambos existem simultaneamente, articulando-se um com o outro, e que ambos devem emergir de pessoas e sociedades que interagem entre si e com os seus ambientes. São também muito mais do que interação, uma vez que a natureza e a cultura não podem ser separadas, como é o caso da sociedade e do ambiente. Assim, a vulnerabilidade e a resiliência são simplesmente parte do ser, e não entidades ou atributos distintos.

Como tal, exprimem e abraçam razões para acabar com situações e circunstâncias em que lidar com oportunidades e adversidades é mais ou menos possível. São processos a longo prazo que descrevem os motivos da existência de estados observados, e não meras descrições desses estados. Estas explicações devem abranger a sociedade e o ambiente, entrelaçando-se em vez de se desligarem uns dos outros, e devem envolver histórias e futuros potenciais, e não meros instantâneos no espaço e no tempo.

Para as ilhas, os fenómenos e mudanças ambientais são frequentemente vistos como expondo ou criando vulnerabilidades e resiliências. No entanto, um terramoto ou as alterações climáticas não dizem às pessoas e às sociedades como reagir. Em vez disso, aqueles que têm poder, oportunidades e recursos tomam decisões sobre aspetos de governação a longo prazo, incluindo igualdade, equidade, apoio coletivo e serviços sociais.

Sabemos como construir infraestruturas para resistir a terramotos. Esta tarefa não pode acontecer de um dia para o outro, mas requer códigos de construção, regulamentos de planeamento, profissões qualificadas e escolhas para ser bem-sucedida. Tomando os exemplos das ilhas, os líderes dentro e fora do Haiti que controlaram o país ao longo de décadas, decidiram não construir para os terramotos, levando a catástrofes devastadoras em 2010 e 2021. Entretanto, o Japão adotou uma abordagem diferente, o que significa que, apesar dos terramotos de 2003, 2011 (que tiveram um terrível número de tsunamis) e 2022, que foram muito mais fortes do que os do Haiti, registaram-se poucos desmoronamentos.

Este processo a longo prazo de parar ou permitir danos relacionados com sismos é uma escolha da sociedade, o que significa que as catástrofes emergem da escolha de processos de vulnerabilidade e resiliência. As catástrofes não provêm de terramotos ou outros fenómenos ambientais, pelo que não são da natureza e “catástrofe natural” é um termo errado.

Uma vez que as alterações climáticas afetam o clima e o clima não causa catástrofes, as alterações climáticas não afetam frequentemente as catástrofes. Por exemplo, as ilhas têm sofrido ciclones tropicais durante milénios, com a época das tempestades a acontecer anualmente. Há muito conhecimento para evitar danos e muito tempo tem havido para implementar este conhecimento, no entanto, ainda se assiste frequentemente a catástrofes como o Furacão Maria nas Caraíbas em 2017 e o Ciclone Harold no Pacífico em 2020. Quando as pessoas e as infraestruturas não estão preparadas para uma tempestade, então ocorrem desastres. As alterações climáticas aumentam a intensidade e diminuem a frequência dos ciclones tropicais, mas não têm impacto nas escolhas humanas a longo prazo para se prepararem (criando resiliência) ou não (criando vulnerabilidade). A escolha de não o fazer é uma crise de escolha humana, não uma “crise climática” ou “emergência climática” – por isso estas expressões também estão mal construídas.

Os estudos insulares há muito que ensinam ao mantra ilhéu que as mudanças ambientais e sociais são sempre de esperar em todas as escalas de tempo e espaço. A vulnerabilidade torna-se o processo social de esperar que a vida seja constante e de não estar preparado para lidar com ambientes diferentes ou alterantes, em escalas de tempo curtas (por exemplo, terramotos) ou longas (por exemplo, alterações climáticas). As vulnerabilidades surgem mais frequentemente porque as pessoas não têm opções, poder ou recursos para alterar a sua situação devido a fatores como a pobreza, a opressão e a marginalização. Outros tomam a decisão de que a maioria seja vulnerável. A resiliência torna-se o processo de contínuo ajustamento e flexibilidade, para aproveitar ao máximo o que o ambiente e a sociedade em constante mudança podem oferecer para apoiar a vida e a subsistência de todos. Para o fazer, são necessárias opções, poder e recursos.

No entanto, os estudos insulares demonstram que os limites à resiliência são, apesar de tudo, evidentes. A história humana mostra uma longa lista de comunidades insulares a serem dizimadas e ilhas inteiras a serem forçadas ao abandono. A Ilha de Manam, na Papua Nova Guiné, foi evacuada algumas vezes devido a erupções vulcânicas. Muitas comunidades insulares do Pacífico desapareceram no século XIV devido a uma importante alteração climática e do nível do mar na região, enquanto os testes nucleares durante a Guerra Fria deixaram muitos atóis inabitáveis. O povo indígena Beothuk da Terra Nova morreu devido a um colonialismo violento e assolado por doenças. Nas décadas de 1960 e 1970, os ilhéus de Chagos foram forçados a abandonar o seu arquipélago do Oceano Índico para darem lugar a uma base militar. Todas estas situações testam a resiliência – ou perdem-na por completo.

Os estudos das ilhas demonstram assim a construção da vulnerabilidade e da resiliência como conceitos, como processos e como realidades, ilustrando o cuidado na interpretação e aplicação necessária para ambos, a fim de captar um quadro abrangente. A vulnerabilidade e a resiliência não se contradizem nem se opõem, antes se sobrepõem e transformam de acordo com o contexto e os detalhes. A vulnerabilidade e a resiliência das ilhas baseiam-se muito nas perspetivas daqueles que observam e são afetados.

Ilan Kelman

Turismo, Cultura e Identidade Insular

A mesma limitação espacial das ilhas pode criar uma ideia de autocontenção que se reflete para o turista (na sua perceção de visitar um “mundo completo”) mas também pode ligar mais claramente os seus habitantes ao local vivido (Grydehøj; Nadarajah ,; Markussen 2018). As ilhas assombradas pelo turismo compartilham a consciência dos seus limites tanto em termos culturais – a sua dissolução num mercado global de fluxos de férias– como também em termos de sustentabilidade do seu território. Stephen A. Royle ( 2009) identifica essa consciência na limitação essencial das ilhas cujas referências culturais podem ser traduzidas ou adaptadas para acolher o público recetor, criando mesmo um conceito particular para a identidade dos visitantes – por exemplo, no estudo de Hazel Andrews (2011) para o Ingleses que visitam Magaluf, em Maiorca. A imagem de vila a preservar que estes locais de residência defendem, será, no entanto, também sempre um produto indireto do turismo, um contraponto gerador de autênticas imagens pré-turísticas que reutilizam o mito do isolamento insular para defender uma identidade local ameaçada pelo turismo globalizante. No entanto, como vimos, muitas vezes a história das ilhas é de contacto constante. Segundo Eduardo Brito Henriques (2009: 43), o que partilham não é o isolamento mas sim a hibridação a que conduzem os seus portos e a sua vocação marítima.

O debate sobre a afetação cultural do turismo em ambientes insulares partilha as suas posições com aquele que se desenrola no quadro mais alargado da antropologia cultural, e no qual,  grosso modo, podemos identificar duas posições: a de quem vê no turismo, uma forma de aculturação do local e a daqueles que entendem – a partir de diferentes posições – que o turismo pode funcionar como um motor de preservação cultural ou de criação de novas formas culturais. Na primeira posição, encontraríamos sobretudo análises sobre como a mercantilização cultural em ambientes insulares provoca a modificação da cultura local que, como Michel Picard (1996) já percebeu a partir dos seus estudos em Bali, muda quando se torna uma representação performativa para os turistas. Ao mesmo tempo, Keith G. Brown e Jenny Cave (2010) observam que necessariamente convertem a relação entre turista e morador numa relação entre consumidor e produtor, que pode adaptar o seu produto às expectativas do primeiro. O acesso à cultura local é, portanto, reservado a poucos turistas exigentes e muitas vezes aqueles com alto poder aquisitivo que, por exemplo, quando chegam a Mallorca visitam o túmulo de Robert Graves no pitoresco – e caro – município de Deyà e não saem pelas ruas decoradas com bandeiras alemãs ou britânicas de Magaluf ou El Arenal.

Estudando o turismo cultural nas Ilhas Trobriand, Michelle MacCarthy reflete sobre os usos do conceito de autenticidade na valorização dos produtos culturais consumidos pelos turistas, uma autenticidade que a sua própria presença poderia corromper. No entanto, numa posição  construtivista do elemento cultural –conclui-, a autenticidade como tal que só existe como projeção do próprio turista, é, em si, um produto turístico vendido por culturas em constante processo de evolução. Sob esse ponto de vista, Antoni Vives e Francesc Vicens (2021) analisam o vínculo entre cultura turística e identidade local, sendo que – assim o entendem-  não é muito útil compreender o turismo como um processo de aculturação de identidades pré-turísticas puras e imóveis. O turismo também importaria formas complexas e criativas de contacto cultural, que emergem – como Michel Picard também concluiu de Bali – através da criação de novas formas de produção cultural moderna.

Também na sua dimensão ambiental, o turismo promove –desde as primeiras tentativas de inventar a natureza como lugar de contemplação dos visitantes (Martínez-Tejero e Picornell 2022)– uma patrimonialização do elemento natural que tem um duplo efeito especialmente relevante nas insularidades turísticas. Por um lado, transforma a natureza em paisagem, anulando, por exemplo, a relevância produtiva do rural ou a necessidade de respeitar as mudanças no meio ambiente e  nos seus recursos. A pulsão de visita ao ambiente paisagístico patrimonializado acaba, num perverso círculo paradoxal, por rapinar a natureza que celebra, motivando a exploração urbana, os meios de comunicação, a superocupação do território. Pelo contrário, gera uma tomada de consciência dos próprios limites do territorial, mas em que estes não se referem apenas à tomada de consciência do litoral, mas também, a uma avaliação da própria materialidade da terra que deriva, ao mesmo tempo, em dois registos interligados: a geração de um discurso ecológico onde a identidade insular está amplamente ligada ao espaço natural e, do mesmo modo, numa certa essencialização desta natureza como lugar de acolhimento das raízes das culturas residentes que pode conduzir a uma quase nostálgica idealização do pré-turismo como autêntico, ignorando, por vezes, as histórias de trânsito que, como vimos, muitas vezes condicionam as histórias insulares e as suas determinações literárias mais interessantes em termos de inovação metodológica. Considerando o terreno, as opressões do mercado de trabalho, a constante reinvenção do local na sua projeção e/ou resistência turística, o imaginário global do insular parece ainda mais uma construção literária, real na sua capacidade de atrair visitantes e configurar olhares, bem como avaliar como esses olhares são reajustados ou (cor)respondidos a partir da cultura local.

Mercè Picornell

Referências:

Andrews, Hazel (2011). “Porkin’ Pig goes to Magaluf”. Journal of Material Culture, 16: 2. 151-170.

Grydehøj, Adam; Nadarajah, Yaso; Markussen, Ulunnguaq (2018). “Islands of indigeneity: Cultural Disctinction, Indigenous Territory and Island Spaciality”. Area, 52(1): 14-22.

Martínez-Tejero, Cristina; Picornell, Mercè (2022). “From Pleasant Difference to Ecological Concern: Cultural Imaginaries of Tourism in Contemporary Spain”. Luis I. Prádanos, A Companion to Spanish Environmental Cultural Studies. Londres: Tamesis Books. 195-205.

Picard, Michel (1996). Bali: Cultural tourism and touristic culture. Singapur: Archipelago.

Royle, Stephen A. (2009). “Tourism Changes on a Mediterranean island: Experiences from Mallorca”, Island Studies Journal, 4: 2. 225-240.

Vives Riera, Antoni; Vicens Vida, Francesc (2021). Cultura turística i identitats múltiples a les Illes Balears. Passat i present. Barcelona: Afers.

Turismo, Insularidade e Sustentabilidade

A limitação territorial das ilhas faculta maior consciência dos limites dos seus recursos face à sobreexploração turística. Na bibliografia crítica, no entanto, identificam-se duas tendências quase opostas: a dos que detetam os riscos de sobreexploração turística das ilhas, e a dos que identificam no turismo uma possibilidade de desenvolvimento que a insularidade pode travar para outras indústrias turísticas. O conceito de “resiliência” é frequentemente discutido como uma virtude específica que permitiria suportar a pegada social e ecológica do turismo mais do que outros ambientes e diversificar o conhecimento necessário para se sustentar com seus próprios recursos (McLeod; Dodds, Butler 2021). A necessidade de “apoiar” esta pegada, mesmo quando ameaça o equilíbrio social, ecológico e cultural do ambiente, está relacionada com a possibilidade de “desenvolvimento” de ambientes que não têm conseguido, pela sua condição periférica ou remota, tornar-se industrializados. Segundo Dimitrios Buhalis (1999), o turismo reduziria a capacidade de prosperidade – prosperity gap – entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Este decréscimo poderá ter como contraponto, admite ainda, a desigualdade no acesso ao capital gerado pelo turismo quando a maioria dos residentes participa apenas na riqueza turística proveniente de ocupações laborais precárias, próprias ou, em geral, condicionadas pelas multinacionais que influenciam a procura turística, o acesso à ilha e até – se o poder político o permitir – o seu ordenamento e acessibilidades. Visões um pouco mais matizadas e críticas são as de quem considera a fragilidade de muitos ecossistemas insulares submetidos a um grande desgaste de recursos – por exemplo, a água – devido à chegada massiva de visitantes. Ao considerar o impacto das mudanças climáticas nos ambientes turísticos insulares, a partir do caso particular de Malta e Mallorca (Calvià), Rachel Dodds e Ilan Kelman (2018) propõem diferentes planos de ação necessários para proteger os ambientes para que sejam seguros para o turismo, mas sem questionar como o turismo, de facto, também contribui para as mudanças climáticas e a degradação natural de muitos dos ambientes em que ocorre. A sustentabilidade, assim, é deste modo definida não apenas como uma necessidade da prática turística em relação ao território em que se insere, mas como uma estratégia que permite a adaptação às mudanças provocadas, entre outros fatores, pela própria prática turística.

Mercè Picornell

Referências:

Buhalis, Dimitrios (1999). “Tourism in the Greek Islands: The issues of peripherality, competitiveness and development”, International Journal of Tourism Research, 1(5), 341-359.

Dodds, Rachel, i Kelman, Ilan (2008). “How climate change is considered in sustainable tourism policies: A case of the Mediterraneal Islands of Malta and Mallorca”, Tourism Review International, 12, 57-70.

NcLeod, Michelle, Dodds, Rachel, and Butler, Richard (2021). “Introduction to special issue on island tourism resilience”, Tourism Geographies, 23: 3, 361-370.

Turismo Insular e Colonialismo

Tanto na ausência ou na representação estereotipada do morador, quanto na identificação da ilha com seu ideal, o olhar estrangeiro e o controlo sobre a representação têm sua marca. O elemento insular, escrevem Adam Grydehøj, Yaso Nadarajah e Ulunnguaq Markussen (2020), desempenhou um papel na construção das esferas de poder coloniais e neocoloniais. Além disso, aqui não se trata de uma localização puramente imaginária – digamos, por exemplo, a ilha de Caliban, seja em William Shakespeare ou Aimé Césaire – mas de uma dependência particular que, segundo Yolanda Martínez (2018), continua a estar operacional. Poder-se-ia mesmo identificar uma tendência histórica na utilização de alguns territórios ditos “ultramarinos” como laboratório ou modelo na assimilação de outras regiões insulares ou, diríamos ainda, de outros continentes. Conceitos utilizados para referir ilhas distantes das suas metrópoles como “territórios ultramarinos” ou “regiões ultraperiféricas”, utilizados no quadro europeu, já denotam a complexa ligação entre insularidade e colonialismo. Alguns investigadores têm projetado esta ligação à constituição do elemento insular como destino turístico, sobretudo quando esta insularidade está ligada a territórios geoestrateticamente mais “a sul” dos países europeus com capitais continentais que foram as “suas” metrópoles. Helen Kapstein (2017) identifica nesta capacidade de gerar “outros lugares” uma origem particular, ligada ao imaginário constitutivo das nações europeias.

Carla Guerrón (2011) estudou o uso turístico do conceito de “ilha paradisíaca” derivado da projeção de conceções como a “descoberta” das ilhas, mesmo quando estas são habitadas e as representações dos colonizadores sobrevivem nas representações atuais. Assim, por exemplo,   apesar das ilhas das Caraíbas estarem entre as mais heterogéneas social e etnicamente na cultura popular,  são reproduzidas como versões simplificadas e uniformes, marcadas pelo exotismo e exuberância. Na ilha, o tempo parece parado. As ilhas, escreve Kapstein, funcionam como um microcosmo particular no qual a nação pode projetar os seus estereótipos. Nesse sentido, Anthony Soares escreve que “Hoje, num contexto supostamente pós-colonial, as ilhas oferecem, talvez, as imagens mais potentes, angustiantes e anómalas do projeto neocolonial, e podem, portanto, ser vistas como exemplos das complexas vidas posteriores ao império” (2017: xvi ). No mundo do capitalismo global, a simplicidade da identificação entre insularidade e colónia é desafiada pela capacidade das próprias ilhas gerarem dinâmicas hierárquicas de poder (emblematicamente, nas sedes de grandes grupos hoteleiros, sediados nas Ilhas Baleares e alargando as suas dinâmicas nas Caraíbas). Não deixa de ser verdade, porém, que um certo imaginário colonial sobrevive na representação das ilhas, ou seja, na sua representação audiovisual, na identificação do residente como criado do visitante, nas hierarquias nacionais que se impõem na própria dinâmica da hospitalidade turística. Tina Jamieson, por exemplo, estudou-o na permanência da ideia de exotismo que se mantém no uso de certas ilhas do Pacífico como locais para casamentos, para turistas que costumam vir das antigas metrópoles (Hampton; Jeyacheya 2014). Louis Turner e John Ash (1975) já escreviam que o turismo, desde os seus primórdios no século XIX, se tornou  um agente de consolidação do “império”. Caberia avaliar como o capitalismo tardio varia essa perceção “imperialista” em formas de dominação geoestratégica ou de exploração dos recursos naturais, que já não respondem  à dialética centro-metrópole x periferia. Esta ligação entre a ideologia colonial e a imagem mitificada da ilha justificaria, para alguns, uma certa especificidade no desenvolvimento do turismo nos enclaves insulares. A recorrência da segmentação insular na promoção turística, que coexiste, claro está, com outras segmentações igualmente determinadas por imaginários mais ou menos coloniais –o deserto, o Oriente, o indígena, a paisagem nórdica selvagem, as cidades ‘históricas’– parece acompanhar esta ideia que, no entanto, tem sido questionada.

Mercè Picornell

Referências:

Grydehøj, Adam; Nadarajah, Yaso; Markussen, Ulunnguaq (2018). “Islands of indigeneity: Cultural Disctinction, Indigenous Territory and Island Spaciality”. Area, 52(1): 14-22.

Guerrón Montero, Carla (2011). “On Tourism and the Constructions of ‘Paradise islands’ in Central America and the Caribbean”. Bulletin of Latin American Research, 30: 1. 21-34.

Kapstein, Helen (2017). Postcolonial Nations, Islands, and Tourism. Londres i Nova York: Rowman i Littlefield International.

Martínez, Yolanda (2018). “Colonialismo y decolonialidad archipelágica en el Caribe”. Tabula Rasa: revista de humanidades, 29. 37-64. Turner, Louis; Ash, John (1975). The Golden Hordes: International Tourism and the Pleasure Periphery. Nova York: St. Martin’s Press.

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